O Teatro-Educação e sua doença

Aplicação de um saber prévio: eis a doença que aflige o Teatro Educação. Necessidade de alicerçar a criação em elementos extraídos das ciências do desenvolvimento humano: eis a doença agravando-se.

Por que falo de doença? Nietzsche dizia que um dia a arte ainda seria a nossa medicina. Se entendermos por aí uma prática-pensamento de Teatro Educação, as coisas tendem a melhorar.

Ocorre que você pode ir por vários caminhos. A doença consiste em acreditar e viver como se o caminho fosse único. Ao contrário, são caminhos…

Cada um produz ou inventa o mundo que deseja habitar. No caso da cultura do brincar e de suas linhas de errância, importa acessar as potências do olhar-criança sobre o mundo.

Tenho visto que os artistas cênicos que se voltam para a Arte Educação muitas vezes aprendem, nos cursos de licenciatura principalmente, que é preciso estudar as etapas de desenvolvimento do ser humano, a fim de validar os exercícios teatrais. Aqui, a tese da aplicação: você tem um saber prévio sobre a cena que deve ser digerido por um grupo humano específico, sob sua coordenação ou liderança. Você estuda o desenvolvimento humano para ter um chão. A gente precisa de um chão: o lugar onde piso com os pés.

Eu já estou, sempre, num chão. De algum modo, já estou numa situação. O segredo consiste em tirar meu chão… Ou fazê-lo cantar. E entrar em conexão com outros cantos. Deixar-se modificar. Abandonar o território. Fazer-se nômade.

Outro jeito de acessar a criação em contextos de ensino ou em grupos humanos não voltados necessariamente para a profissionalização: o de encenador Robert Wilson nos anos 60 e 70. Ele tomava autistas e deficientes auditivos como instauradores de um novo plano da encenação. A questão não era, como tem se apresentado a muitos daqueles que se voltam para a educação inclusiva em arte, por exemplo, estudar meios de levá-los à arte – a um saber prévio. Seu caminho consistiu, ao contrário, em mostrar que já havia arte ali, no movimento daquele autista. A cena se modifica, o chão foge.

Trata-se, desse modo, de fazer que o plano da arte varie, defase, seja atravessado e saia à frente com outras potências, a partir da entrada de expressões humanas não afeitas ao universo da obra de arte entendida como obra acabada (coisa de algumas poucas centenas de anos).

Porém, eu não estaria gerando outra exclusão ao dizer que se trata de uma doença, o caminho único que tem vigorado no Teatro Educação? Justamente, se o que não mata engorda, a questão não está presa à estética do teatro dramático, mas à normatividade que tem imperado na abordagem do tema. A arte não surge como regra e norma, mas como um meio de dar sentido à vida. Que seja uma regra: ela vale enquanto instaura o chão que a sustenta! O teatro dramático, por exemplo, é uma sinfonia-máquina. É um desejo. Exclui do seu plano tudo o que é ruído. Mas, justamente, outros caminhos incluem os ruídos – as linhas de errância da criança são alguns deles.

As crianças e suas linhas de errância proporcionam outro plano. Em vez de procurar encaixar um mundo prévio nos alunos e alunas, você entra num plano de ciência nômade: seguir os traços de expressão que já estão acontecendo. E isso, é outra coisa.

Experimente!


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Imagem: Kandinsky – Composição VIII, 1923

Teatro pós-dramático e Educação

Uma das questões apresentadas no outro blog sobre criação cênico-corpórea, estética e micro-políticas são exercícios de ressonância com as análises de Hans-Thies Lehmannn a respeito do teatro pós-dramático. Entretanto, não havia, ainda, encontrado quem se dispusesse a trabalhar o tema na perspectiva da Arte-Educação. A grande maioria dos estudos de Teatro Educação, especificamente, estão voltados ao aspecto dramático, à construção de personagens ou de narrativas racionalmente discursivas.

André Mendes, com sua tese de doutorado O teatro pós-dramático na escola, vem potencializar esse campo de pesquisa e criação. Trata-se de um estudo que conribui para as práticas de de arte-educadores, artistas cênicos e interessados no campo das fronteiras e intermídias. Lembro-me, nesse caso, do pioneirismo de Ione Medeiros em Belo Horizonte, fundadora do Oficcina Multimédia, grupo que vem há mais de 20 anos criando nesse campo. Ione militou como Arte-Educadora e realizou diversos projetos nos Festivais de Inverno da UFMG que incorporavam uma estética cênica hibrida e provocadora. Para não falar, também, numa de suas parcerias, a artista Manoela Rebouças, que produz intervenções de Teatro Plástico nas escolas.

Na sua tese, André apropria-se, principalmente, dos pensamentos de Lyotard, Foucault e De Certeau, perpassando o happening, as intervenções cênicas, as criações híbridas, apontando para um teatro pós-dramático. Sua análise aborda as questões da educação e busca abrir brechas para a emergência de uma corporeidade não institucionalizada.

Muitos alunos e alunas de artes cênicas, atores e bailarinos, que estão em processos de criação tão singulares que não se enquadram totalmente na perspectiva do teatro dramático, quando solicitados a contribuir para a Educação, acabam por caminhar pelas já trilhas já reconhecidas. Não que um processo criativo seja melhor que o outro, mas sim que fazem emergir mundos diversos. Encontrar uma tese de doutorado que aborda tais questões alimenta a vontade de continuar a dialogar com os espaços institucionais da educação formal, abrindo novos possíveis para que as corporeidades de crianças e adolescentes possam usufruir das potências criadoras apontadas pelo pós-dramático.

Uma perspectiva pós-dramática para o teatro não resulta em algo que seja melhor ou que supere, em termos de paradigmas, o mundo inventado pelo teatro dramático. São, justamente, máquinas diversas: inventam, cada uma, sua própria coesão de sentido. O teatro interpretativo, baseado no discurso oratório dos atores, tendo o texto literário (mesmo que criado somente na encenação) como fator predominante, incluindo a conexão direta entre personagem e lugar, tem o seu lugar e constitui uma arte que podemos admirar a qualquer tempo. No entanto, quando se adentra nos espaços de uma arte mais instável, cujo estatuto configurativo implica interferências e ruídos, atravessamentos de sentido, flutuações de significado, outras experiências acontecem.

Uma delas diz respeito à entrada em cena de corpos desabilitados para a arte, expostos na sua concretude, abrindo espaços antes inconcebíveis para uma arte que se pensa completa e acabada. Um texto dramático pede que os atores dominem a técnica interpretativa, a fim de que possam as fendas do mundo. Num teatro pós-dramático, as fendas são as próprias corporeidades, expostas como estão, numa intromissão do real no plano da ficção.

Nesse sentido, um teatro pós-dramático é inclusivo: um corpo não habilitado para a cena, como a dança contemporânea não cessa de defender, pode ser um corpo expressivo, configurador de uma experiência poética. O teatro mais radical, como inaugurado por Robert Wilson nos anos 60, tem sido justamente o mais inclusivo: ele trouxe para a criação, em primeiro plano, autistas e deficientes auditivos. As conexões entre Educação e Teatro são, no mínimo, múltiplas e comportam singularidades.

A tese de André Mendes, nessa perspectiva, encoraja aqueles que desejam explorar outros caminhos para a criação cênica, em termos de Arte-Educação.

Para saber mais:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.
GAMA, Ronaldo Nogueira. As novas tecnologias e o ator pós-dramático. Revista Polêmica Imagem n. 19,UERJ.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de Arte Total para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva.1986.
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 2005.
SANDFORD, Mariellen R. (]Edited). Happenings and Other Acts. L
ondon and New York.Routledge. 1994
ROJO, Sara. La Performance art en America Latina. In, CARRERA, André… [et al] org. Mediações Performáticas Latino-Americanas II. BH: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

Territórios e Fronteiras da Cena. Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e humanidades. ECA-USP/Abrace.

Referências:

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda – Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.