A criança pequena faz teatro?


Quando nos encontramos diante desta pergunta (se a criança faz teatro, no caso, a criança de até 10 anos de idade), primeiro devemos fazer outra pergunta: o que temos em mente quando dizemos
teatro?

A questão tem por suposto que os teatros são muitos. Não há uma técnica de teatro e, portanto, não haveria um método específico de ensino do teatro para crianças. Então, vamos lá:

1. A criança brinca. E quando ela brinca realiza uma exploração sensível do mundo.

2. Ao desejarmos ensinar algo às crianças deveríamos, primeiramente, perguntar o que poderiamos aprender com elas. Ensinar teatro às crianças pequenas pode ser como vender água na beira do rio.

3. Outra pergunta: na prática de Arte Educação ou de Teatro Educação a que nos dedicamos, qual a experiência sensível que as crianças estão realizando? Não podemos nos esquecer: arte é conhecimento sensível, mesmo que capture forças insensíveis.

4. O ensino de arte pressupõe, numa via, que a criança entre em contato com o mundo da arte. Ana Mae Barbosa, por exemplo, defende a triangulação: a) o fazer; b) a apreciação; c) a crítica e a análise. Nessa direção, este blog defende que há caminhos que conectam o brincar exploratório e sensível com as experiências artísticas (principalmente com as vanguardas artísticas, incluindo o teatro pós-dramático). Tudo depende de nossa capacidade de seleção.

5. Koellreutter, músico e compositor a quem sempre recorro, distingue, nos processos de formação artísticas, entre o figurativo e o pré-figurativo: o primeiro ensinaria técnicas que deduzidas de determinadas formas artísticas prontas e acabadas; o segundo abriria potências de experimentação. Em Artes cênicas, quais seriam essas potências?

6. Alinho os seguintes meios que podem ser potencialmente explorados:

Corpo

Exploração do espaço e de objetos de relação. Tais objetos, na trilha de Lapierre
& Aucouturier (veja uma postagemsobre os autores), são aqueles que permitem o contato da criança com um objeto que não dirija imediatamente para um jogo de regras específico ou para um uso já codificado e que permita, em primeria mão, um contato com o seu tônus corporal (fazendo a ponte entre o sistema involuntário e o sistema voluntário) e, em segunda mão, um contato com seus parceiros e parceiras. Os panos são excelentes objetos de relação. As cordas também, mas devem ser usadas com cuidado (pois podem enforcar facilmente). Bastões (cabos de vassoura) são outros objetos excelentes.

Sempre componho um baú com dois tipos de objetos: a) os objetos relacionais (panos etc.) e os que já trazem um histórico mais codificado de uso: telefones, bolsas etc. Nesse último caso, deve ser evitada a parafernália, pois as crianças ficam com opções em excesso, não sabem o que utilizar, ficando muito mais envolvidas com a confusão do que com os objetos. Procuro oferecer aquilo que foge a um senso muito “social”: não pode faltar um pinico, por exemplo. Um guarda-chuva proporciona plasticidade. E assim por adiante. Tal uso, eu condidero como o que deve ser mais cuidadoso, pois, na trilha de Deleuze, é a linha sóbria que nos permite criar.

Deve ser lembrado, ainda, o teatro de formas animadas. Peter Slade (veja uma postagem em que apresento o autor e discuto o teatro na escola) diferenciava, assim, entre o jogo pessoal (a partir dos impulsos corporais) e o jogo projetado (onde a ação parte de um objeto animado pela criança, como um boneco etc.). Os dois jogos podem ser combinados. Mas, de fato, é bom lembrar que, como as técnicas circences, o objeto animado livra as crianças da introspecção que o modelo do teatro dramático e interpretativo impõe. Além disso, o objeto é, na relação com o corpo, o primeiro e não o segundo para Lapierre & Aucouturier. Isso quer dizer que a criança pequena necessita de contato com os objetos e com os outros corpos (fazer coisas no mundo, tal como subir em árvores, empurrar os outros, cair, pular, puxar etc.), através dos quais regula o seu tônus e pode, assim, produzir um conhecimento sensível.

Imagem

A criação de instalações corporais e com objetos no espaço. A imagem em movimento. A plasticidade das criações.

Som

A pesquisa sonora. O levantamento de sons, seja por gravação, seja por execução ao vivo etc. Estudo musical e sonoro. A poesia verbal e sonora.

6. A criança pequena, na perspectiva do teatro dramático, não faz teatro, mas sim faz-de-conta. Peter Slade defende que a criança tem uma expressão própria: o jogo dramático. Este seria, para Ingrid D. Koudela, diferente do jogo teatral (no qual há comunicação palco-platéia).

De fato, essa comunicação é derivada do jogo teatral ou está na sua base. No caso do teatro pós-dramático para uma relação de ensino teatral, nós não teríamos por suposto a comunicação, mas a exploração sensível. Mais a presença ritual do que a comunicação teatral. Numa postagem, fiz referência a Maria Lúcia Pupo, pesquisadora do Teatro Educação, cita as características de um teatro pós-dramático que poderiam ser levadas em conta num processo de formação artística: transgressão dos gêneros;

b) negação da fábula.; c) presentificação; d) recusa da síntese em troca da busca de uma “densidade em momentos intensos”.

7. Transgressão dos gêneros

Podemos misturar comicidade com dramaticidade e formalismo (uso de objetos, instalações, experiências de poéticas vocais etc.).

8. Negação da fábula

Caractéristica essencial. O teatro dramático pressupõe uma construção da fábula em cena que é extremamente sofisticada: envolve técnicas que as escolas de teatro dramático procuram ensinar, na perspectiva da interpretação teatral etc. A criança pequena não irá dominar esses elementos, que pressupõe, inclusive, a presença de um diretor e de um dramaturgo orientando o processo de fora. No faz-de-conta das crianças, quando elas entram nesse nível de fabulação dramática e concatenada, elas realizam apenas ações esquemáticas, mas nunca o plano proposto.

A negação da fábula supõe que não há uma história, um além ocorrências cênica apresentam em termos de sua fisicalidade mesma. O público não vê o desenrolar de uma história concatenada, mas sim vivencia e compartilha de um acontecimento. Assim, as crianças estão livres de uma “comunicação palco/platéia”.

9. Presentificação e recusa da síntese em favor dos momentos densos

As vivências que estão ocorrendo no momento. Se elas são passíveis de repetição, isso não interessa. Aqui, há possibilidades de conexão com o campo da performance art.

10. O que pode ser ensinado, em termos de habilidades?

As aulas de circo, principalmente as de equilíbrio, malabares, etc. são as que mais proporcionam domínio de habilidades. Andar na perna de pau, etc. Nesse sentido, os brinquedos como skates, bicicletas, patinetes, são passíveis de serem utilizadas cenicamente. Isso sem falar na possibilidade de usos de tecnologias.

Por fim, independente de tudo o que foi dito, uma certeza permanece e atravessa todas esses planos: deixe, permita e favoreça que as crianças brinquem.

O que a criança ensina aos adultos

Vi num vídeo sobre o Orçamento Participativo da Educação, de Recife, o depoimento de um menino:

“A criança ensina três coisas aos adultos:estar sempre alegre, não ficar parado e chorar muito pelo que deseja”.

Marina Machado: a criança, o brincar e o teatro

Marina Marcondes Machado vem pesquisando há anos a cultura lúdica da infância e suas conexões com as artes, especialmente com o teatro. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Marina e tê-la como companhia numa oficina com educadores no Encontro Mundial de Artes Cênicas, em Araxá/MG. E descobrir afinidades: a infância como o plano sobre o qual educação e arte deveriam se voltar. Infância-memória e infância-presença: os meninos e meninas que fomos e as crianças todas com quem nos deparamos no dia-a-dia.

Marina publicou três livros muito preciosos: O Brinquedo-Sucata, Poética do Brincar e Cacos de Infância. O primeiro apropria-se especialmente das teorias de Winnicott, que é o psicanalista que escreveu o genial O Brincar e a Realidade. O livro é um clássico. E Marina faz uma bela introdução ao pensamento de Winnicott, expondo esse espaço que está entre o objetivo e o subjetivo, que é o da experiência lúdica. Já Poética do Brincar parte com Bachelard e abandona-se nesses vôos. Em Cacos da Infância ela discute as relações da infância com a criação teatral, especificamente com a questão do personagem criança.

Uma autora para ler e reaprender sobre a infância e o brincar.