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Arte-Educação Geral

A criança, o circo e a educação

Imagem: Kamshots

Não sei por que as escolas insistem tanto que as crianças façam apresentações de teatro para a comunidade de pais, com recitações, imitações de show-business e do padrão interpretativo das novelas de televisão. Talvez, a explicação esteja aí mesmo: a escola como reprodução social. No entanto, existem tantas expressões presentes na cultura popular, mais interessantes, mais vivas. Pois se trata, afinal, de como articulamos ritual e imagem.  

Qual a diferença, então, entre o teatro-show-novela e as outras expressões, presentes na cultura lúdica e popular? É que, nessas últimas, o ritual e a imagem estão implicados no ato de brincar. Neste, o apropriar-se dos espaços e tempos do viver andam de mãos dadas. Nas outras não: as crianças têm de representar um determinado papel diante duma audiência.

Nas expressões lúdicas e populares, não há essa separação rígida entre palco e plateia, entre quem faz e quem contempla. E nem mesmo esse caráter de auditório animado, aliás, manipulado, característico da maioria dos teatros produzidos para crianças incorporam. Nada disso, todo mundo se expressa através dos símbolos, do corpo, da voz e dos trejeitos.

Mas há um mundo cênico, ainda, que merece nossa atenção: o circo.  Ele permaneceu sempre marginal, refúgio de muitos excluídos, sendo um meio de transmissão de habilidades poéticas e virtuosísticas incríveis. Dificilmente foi considerado pela educação oficial como objeto de conhecimento.  Veja você que o circo tem toda essa espetacularidade, mas que se expressa numa poética do irregular e do inconsciente. Uma linguagem de atrações, cuja base não é assentada em dramas psicológicos (uma risada da plateia colocaria qualquer seriedade a perder), mas no jogo, nos tipos, na surpresa, no desenvolvimento muitas vezes paralelo e simultâneo. E no encanto. Sua dramaturgia é física e performativa. O mais importante, entretanto, é que o circo ao contrário de alguns teatros dramáticos e novelas não querem se parecer com o real. Ao contrário, ele traz a potência do falso.

E por isso mesmo é que as crianças podem brincar de circo. Elas não precisam corresponder a nada. Podem errar e morrer de rir disso. Aliás, lembro-me dos meus anos de recreacionista na Escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte: todo mundo podia se expressar por esse meio – tinha vez e lugar para todos. E as habilidades, sendo físico-expressivas e não psicológicas, colocam a criança no foco performativo. Ela sabe que está enfrentando um desafio, superando uma dificuldade, realizando uma tarefa. A criança estabelece contato com algo concreto – andar na corda esticada ou numa perna de pau, fazer malabarismos etc. E é tão mais vivo!

Lembro-me dos meus irmãos que brincavam de circo no quinta, lá pelos idos dos anos 50, no nordeste de Minas. Uma de minhas irmãs desfilava com uma sobrinha. E meu irmão toureava um cabrito de verdade! Era tudo uma festa.

O circo estava na nossa vida, é verdade.  Surgia de repente, vindo do nada, num fim da tarde, invadindo as ruas, anunciando sua chegada à cidade. O palhaço na perna de pau, com o seu imenso canudo, liderando aquela trupe de artistas, uma estranha gente.

Meu pai um dia levou-me para ver o circo. Dois palhaços sentavam num banco e, de repente, a Morte aparecia para um deles. O palhaço se assustava, chamava o seu parceiro que, então, não via nada, pois a estranha personagem já havia desaparecido. Mais tarde, a Morte voltava a aparecer. E assim, entre sustos e aqueles jogos entre eles, um mundo se descortinava debaixo da imensa lona amarela. E vi dois jovens montados em motocicletas, com os olhos vendados, dentro do famoso Globo da Morte, correndo em alta velocidade, sem que eles colidissem um no outro.

E eu sempre curti circos pelo resto da vida. Uma vez, até dormi uma noite sob a lona de um circo pobre, conversando com os artistas depois da apresentação. Sem falar que minha mãe me contava que um dia eu desapareci aos quatro anos de idade e que fui encontrado no colo de um palhaço de circo!

Sempre fiquei fascinado por aquela gente de circo, aqueles artistas e trabalhadores do surreal e do extraordinário, aquela estranha comunidade. O compositor Assis Valente, autor de Brasil Pandeiro, entre outras músicas, evitou aos 11 anos o apedrejamento de um circo pobre, recitando os versos:

“Essa gente é tal qual passarinhos que armam e desarmam seu ninho, sem achar o lugar certo de construir…”

Mas será que nossos educadores já foram ao circo? Será que os cursos de educação já os motivaram a conhecer um pouco dessa arte?

Vídeo –  Palhaços de Fellini

Palhaços, de Federico Fellini – um filme muito bonito. Aqui vai um pequeno trecho:

httpv://www.youtube.com/watch?v=_CGM2s_t4Gk&feature=relmfu

Mais referências

Clowns, Fellini e o teatro físico. Por Luiz Carlos Garrocho

– Imagem: Kamshots

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

2 respostas em “A criança, o circo e a educação”

Gostei muito do seu blog,por favor se possível me passe uns exercícios para crianças e adolescentes ,participo do projeto mais educação na escola Marcos Valentino,(dou oficinas teatrais )Não temos espaço ,não temos estrutura pra nada !Como faço ?Estou usando os recursos que posso !!Mas tá difícil!O projeto é da prefeitura !
Aguardo seu contato
Dora Santos .

Prezada Maria Auxiliadora

Nesse enfoque da arte e da cultura lúdica da infância, nós não trabalhamos com “exercícios”, no sentido de fornecer receitas de atividades. Mas posso lhe adiantar que a fonte mesma, desses “exercícios” que você busca, está na própria cultura do brincar. Ou seja, o receituário está nos jogos e brincadeiras infantis, nos folguedos de tradição popular etc. O importante, acreditamos, não é preencher o tempo das crianças e adolescentes, mas lançar um olhar e se aventurar no mundo vivo das culturais locais. Quais são as brincadeiras de que você se lembra, quando era criança? Quais sãos as brincadeiras de seus pais e avós? Como as crianças brincam hoje? Há grupos tradicionais na sua região? Há grupos de teatro que se dispõem a realizar um trabalho artístico, de pesquisa, sem objetivos meramente comerciais? Quais são as brincadeiras de roda que são, ainda, transmitidas, ou que estão em vias de se perderem? Essa é a fonte, com certeza.
Um grande abraço e sucesso na sua empreitada.

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