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A festa junina, o tempo e a duração

Meu pai na cama, com seus 93 anos e  pouca mobilidade, tentou cantar baixinho: “É noite de São João…” A voz nem saiu direito. E mais não fez, não conseguindo continuar. Ajudei: “Chegou a hora da fogueira…” E cantei umas vezes para ele.

– Você se lembrou!

Meu filho mais novo, com seus quase 10 anos de idade, ficou parado, vendo a cena. Alguma coisa se passou.

Isso veio do nada. Ou de algum lugar. Depois, ele me mostrou que a televisão havia mencionado qualquer coisa sobre a música ou a festa junina.  Mas não foi daí que veio esse afeto. Inútil explicar.      

Meu pai vive na imensidão oceânica de suas lembranças. A mobilidade, cada vez mais exígua, exige esforços enormes.  E assim abre espaço para o terreno do que foi como aquilo que está sendo. O futuro já não tem o impulso do agir. O que está posto à frente, para uma pessoa nessa idade e com dificuldades de locomoção?

Posso passar as mãos sobre seus cabelos brancos. Ali, um mundo de coisas que vivemos juntos, percorre em cada dedo o piano de tantas dores, incompreensões, distâncias, proximidades e carinhos. Afinal, somos feitos disso também: daquilo que cada geração foi omissa e presente para a seguinte, porém a exigir, por meios obscuros ou iluminados, que caminhe sozinha e invente para si um destino.

“Quando eu era pequenino

De pé no chão

Eu cortava papel fino pra fazer balão

E o balão ia subindo

Para o azul da imensidão…”

Tudo isso me traz outra noção do tempo:  a duração bergsoniana. E foi assim que li com imenso prazer um artigo de Ana Veronica Mautner (1) sobre a pressa e o demorar-se nas coisas. Ela diz que estamos ficando presos ao tempo das máquinas. Estas são vendidas como produtos que podem nos fazer “gastar menos tempo”:

“A economia quer que eu use muitos aparelhos, para que o mercado fique aquecido e em movimento. Mergulhada na ilusão de que enquanto eu observo sou mais livre do que quando eu fazia, vou me submetendo a outras forças, que roubam e comprimem o meu tempo.”

E então ela propõe que roubemos o “tempo poupado pelas máquinas”. Que possamos, então, ver e sentir como as coisas se demoram. Mas a demora é relação de uma consciência. Ana diz:

“Sempre que possível, quero ver o sol se pondo. Não quero ser submetida ao pôr do sol editado. Quero esperar a maré subir.
Quero ver a emulsão do ovo com o óleo virar maionese ao ritmo da minha mão, que deve mexer sempre para o mesmo lado. Enquanto a maionese vai crescendo e a mão vai cansando, eu me harmonizo com a vida.”

Tempo das coisas que levam tempo. Esse era o tempo da festa junina. Por que digo assim no passado? A festa junina que meu pai sussurra na cama talvez já não exista mais.  Era um espaço de encontro e não um produto ou uma investida massiva do Estado ou de empresas de entretenimento. Aliás, uma conjunção entre as duas coisas.

Gilberto Gi, porém, reafirma  uma Fé na Festa, voltando-se para suas memórias de infância, depois de ter mapeado com um projeto as festas juninas no sertão. Bonito ouvi-lo falar dessa fé na festa e festa na fé, como é a música que abre (veja o vído a seguir). Contradição? Meu irmão conta que viu, em nossa terra natal, Teófilo Otoni, Luiz Gonzaga cantar e tocar em cima de um caminhão, vindo do nordeste, nos anos 50. De lá pra cá tivemos a indústria cultural, transformando essa ludicidade musical e sonora. E junto a ela toda a sorte de reapropriações do sentindo.

Um traço sensível como um fiapo de vida solto no vento, que meu pai tenta apanhar. Um brinquedo que ressurge na voz, tentando encontrar um ritmo e um som, quando as palavras quase não saem. E o brincar é aquilo que não cumpre obrigação, por isso traz sentidos inesperados. E  que a vida reserva para se reinventar, sempre quando preciso.

Não vamos lamentar um passado perdido, uma festa que foi e não volta mais. Em vez disso, queremos nos apropriar de nossos tempos como uma  duração. Que não me seja roubada a vida na esteira da pressa.

A expressão “curtir”  ganhou uma conotação ligada somente ao prazer. Mas eu me lembro do mestre Antônio Callado, falando numa entrevista na década de 70, sobre o uso dessa palavra pelos jovens. Ele falava, por exemplo, do tempo que o couro leva para ficar curtido. Algo que se elabora, com o qual nos envolvemos e que nos faz demorar numa duração.

E nos perguntamos como curtimos o tempo, a duração e, enfim, qual a nossa festa.

httpv://www.youtube.com/watch?v=T3Q1m6ARLr8

Referências –

– (1)  Reféns das máquinas – Ana Veronica Mautner – Folha de São Paulo, 08.06.2010

– Chegou a hora da fogueira – composição de Lamartine Babo

Bergson – por Gilles Deleuze

– Imagem: Festa Junina do Instituo Libertas: Bh, 2007

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

2 respostas em “A festa junina, o tempo e a duração”

Diz daí, Garrocho!

Lindo post! Me fez lembrar um trecho do livro “A lentidão” do Milan Kundera:

“Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza? Um provérbio tcheco define a doce ociosidade deles com uma metáfora: eles estão contemplando as janelas de Deus. Aquele que contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está sempre à procura do movimento que lhe falta.”

Forte abraço,

Davi

Davi,

Bela citação do Milan Kundera.

E que me lembra uma antiga capa de um lp do Bob Dylan, em que ele estava parado olhando pro céu.

Abraços

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