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Educação e violência: faltam soluções criativas

As nossas escolas públicas estão configuradas, quanto à adiministração dos tempos e dos espaços, com base nas sociedades disciplinares. Foucault produziu o conceito para definir um tipo de organização social fundada no fechamento e no isolamento, na vigilância e na punição. Alguns exemplos: a caserna, o convento, a escola, o hospital, o hospício… Exclusão e inclusão, fechamento e codificação definida, estável, tudo isso faz parte de um tipo de sociedade cujo fundamento é a disciplina.

O atual estágio do capitalismo modifica completamente esse quadro. Gilles Deleuze mostra, num texto magistral, que vivemos não mais em sociedades disciplinares, mas sim em sociedades de controle. Não que as duas não ocorram simultaneamente, pois as últimas ainda convivem com aquelas. No entanto, o fundamento é outro.Veja bem o exemplo de um presídio. Sua fabricação atendia à necessidade de isolamento, de vigilância, de punição. Os limites eram, portanto, fatos consumados. Veja, agora, o que ocorre num presídio, tendo em mente a noção de sociedades de controle: quem está lá dentro detém informações, comanda operações, possui conexões com vários extratos sociais… Algo mudou, não? As fronteiras que garantiam o fora e o dentro estão esburacadas.

Cada vez mais discutimos as dificuldades da escola pública, principalmente em relação à violência. No entanto, as soluções apresentadas, em sua maior parte, ainda estão dentro dos parâmetros fundadores da instituição, que são as sociedades disciplinares. E o que menos acontece numa escola pública, dadas as atuais condições sociais, em contextos de violência, é disciplina.

Encontramos os professores apavorados, recuados e com medo. Horários e espaços de confinamento que explodem com todas as linhas de fuga… No entanto, não faltam análises e mais análises sobre as causas da violência… É claro que algumas escolas públicas conseguem, ainda, funcionar regimentalmente dentro do parâmetro disciplinar. No entanto, quando nos aproximamos mais e mais das regiões submetidas à violência, o quadro muda. O esburacamento do regime de significação é total:

Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito
Mais bonita e
Muito mais intensa do que no cartão postal
Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial…

Caetano Veloso – Fora da ordem

Enquanto a escola não muda e se mantém rigidamente no parâmetro disciplinar (mas vasa por todos os lados…), o capitalismo se faz criativo e cognitivo. Não que o capital nos seus fluxos desterritorializantes deixe de ser menos perverso. Ocorre que, agora, produz riqueza por outros meios.Do lado da escola pública, sua configuração dos tempos e espaços, isto é, dos seus agenciamentos maquínicos, continuam atendendo a parâmetros que não mais funcionam. Aliás, funcionam sim, mas para que as crianças não aprendam… Posso estar sendo injusto e generalisando por demais, porém, a realidade da violência e da não-aprendizagem se impõem sobre grande parte das escolas públicas. Para tanto, poderia ser feito, por exemplo, o levantamento do número de professores que passam nos concursos e desistem em poucos anos. Muitos por medo, outros porque não vêem perspectivas reais de modificação do quadro, outros, ainda, por falta de condições mínimas… Em relação à arte, nem se fala. Não encontramos, na maioria das vezes, espaço digno para uma aula de teatro, para dar somente um exemplo. Em algumas escolas há video e laboratórios, mas não existe uma sala vazia e ampla para o corpo se expressar livremente. Obviamente, uma questão de valores. Há estudos importantes que apontam para o uso da expressão livre e artística na educação, quando os outros recursos falharam.

As escolas privadas estão se adaptando rapidamente aos novos fundamentos das sociedades de controle. Numa instância, elas estão incrementando a conectividade – pelo menos na área científica e na informática. É verdade que em relação à educação da sensibilidade, continuam os problemas. Quanto ao “confinamento”, que permanece, este não é mais configurador da experiência pedagógica e social na rede particular. É somente um elemento de “segurança”. Erguem-se os muros contra o resto da sociedade… Nas escolas públicas, o cercamento é antigo, disciplinar, sendo que este não produz mais qualquer disciplina – e o resultado só pode ser frustrante.

Um dia passei em volta de minha velha escola primária. Voltei no tempo, quando cheguei do interior, no início dos anos 60. Tinha um temor enorme da professora. E um grande respeito. Morria de medo que ela visse, por exemplo, que não havia cortado as unhas. Parei e fiquei olhando pela janela. E o que vi? Um grupo de adolescentes debochando de um outro que dançava mais debochadamente no meio do corredor, com um celular numa das mãos, os braços abertos, rebolando. E o professor, o que fazia? Nada, estava paralisado. E no entanto, as carteiras são as mesmas, a sala é a mesma, a disposição hierárquica idem. Somente uma coisa mudou: o regime disciplinar não funciona mais.

Brizola (no Rio) e, recentemente, Marta Suplicy (São Paulo) tentaram solucionar o problema. Mas os projetos, em grande parte, arrojados, não tiveram continuidade. Parece-me que a classe média paulista nem se preocupou com o desmanche que ocorreu em São Paulo. E veja bem: não é que o projeto pedagógico dependa de tempos e espaços, mas ele se configura nisso, na materialidade do viver cotidiano e de sua rede de conexões.

Em Belo Horizonte há um projeto muito interessante e que tem chamado a atenção pela ousadia e abertura para uma nova educação: a Escola Integrada – na qual as crianças permanecem mais horas em processos educativos, com atividades livres, culturais etc. Começam os ensaios para sair da antiga configuração disciplinar.

A solução para uma educação nova, que consiga enfrentar as questões mais urgentes (sociais e pedagógicas), vai exigir mais recursos, em todos os sentidos. Tudo o que vivemos hoje em termos de violência social e urbana é o karma acumulado de expropriações históricas. Alguém duvida disso? Ou investimos (e muito) em educação pública ou o mundo vira um inferno.

Anoto algumas breves linhas sobre o que chamo de soluções criativas. Elas começam por um investimento em:

a) qualificação de profissionais (de ponta);
b) remodelação completa do currículo (com flexibilização combinada);
c) em espaços inteligentes (salas modulares, que viram espaços de cultura, de conexão, de ciência e de invenção);
d) operações de rede e em territórios (estudos das comunidades, circuitos, trajetos, vínculos etc.);
e) tempos inteligentes e dinâmicos (voltados à recuperação rápida da atenção descentrada);
f) cultura e sua transversalidade, com ênfase na afirmatividade do desejo, na valorização do indivíduo, de sua expressão de vida e conexões com os coletivos e comunidades.

São apenas observações de quem, do lado da arte e da cultura, vê a educação. Tudo isso pode parecer utopia para alguns. Porém, existem projetos que se pautam pela coragem, pela insistência de educadores e governos, apontando para realizações consistentes e promissoras. Devemos incluir o exemplo da Escola da Ponte em Portugal. Portanto, está na hora de sair da política de lamúrias e partir para a ação planejada, com altos investimentos em recursos cognitivos de ponta: numa nova configuração de espaços e tempos da escola pública.

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

3 respostas em “Educação e violência: faltam soluções criativas”

Oi, Garrocho!! Fui aplicada no teu blog pela Cibele Carvalho e virei seguidora fiel. To adorando acompanhar os teus escritos, as reflexoes, as elaboraçoes a partir da projeçao de Deleuze – que eu também admiro e uso/abuso muitissimo nos meus estudos sobre a Cultura do Brincar – e outros autores importantes. Viemos da mesma Escola, né? :-))) Um beijo IMENSO e parabéns!!!

Olá, Cláudia

Fico feliz de saber que você, volta-e-meia, dá uma passadinha por essas paragens…

Então, Gilles Deleuze é mesmo uma das mais belas surpresas da vida. Aliás, há um ensaio que ele escreveu e é maravilhoso: Pure Immanence: Essays on A Life. Você conhece? Há umas traduções da primeira parte (o título) na rede: http://usinagrupodetudos.blogspot.com/2008/02/imanncia-uma-vida-por-gilles-deleuze.html

No mais, conte-nos um pouco das conexões, confluências e ressonâncias que você encontra entre Deleuze e essa maravilhosa cultura do brincar.

Abraços

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