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Há vida fora do brinquedo industrializado e dos shopping centers

 

Os dois meninos estão com onze anos. A moda é uma arma de brinquedo, que atira projéteis de plástico. O meu filho tem uma dessas, pequena, tipo revólver. Sim, acabei comprando para ele, de tanto insistir. Mas não só por isso: lembrei-me da alegria que me tomou quando ganhei de presente os meus primeiros revólveres de cowboi. E também das brincadeiras de assalto ao trem pagador em cima dos murinhos de nossas casas, nos anos 60.  E me lembrei ainda  dessa discussão meio estéril sobre a possibilidade ou não desses brinquedos induzirem a violência. Por tudo isso, pensei: vamos acompanhar isso… Ele queria uma arma enorme, mas aí eu achei que era muito exagero.

E então, ocorre que o amigo de meu filho veio passar o fim de semana com a gente. E trouxe junto uma enorme arma de brinquedo, uma imitação dessas que aparecem nos filmes e jogos eletrônicos. Um terror de arma! Aliás, uma estupidez. Não pelos motivos que estão por aí em circulação, mas simplesmente porque é um trambolho que impede qualquer imaginação. Meu diagnóstico é simples e direto, avesso ao cunho moralista: o brinquedo industrializado brinca sozinho!  Além disso, a arma de brinquedo era de um exagero só: impossível andar normalmente nas ruas sem chamar a atenção. Mas a coisa não se encerra aí: há toda uma cultura do tédio que é preciso driblar. E é disso que eu pretendo falar.  

Sim, comprei a tal pistola para o meu filho porque não acredito nesse moralismo reinante. Se não houver uma arma de brinquedo, serão as brincadeiras de matar e morrer. Quem nunca brincou disso? Numa postagem eu discuti isso (Os jogos corporais e simbólicos da criança: entre a ficção e o real). Muita gente se equivoca sobre a violência simbólica. Acreditam que ela leva à violência real. Lembro-me também da ocasião em que tive de intervir a favor do meu filho menor e de três colegas seus, quando uma tutora de uma escola católica e tradicional proibiu os meninos de se atracarem, depois da aula, numa brincadeira de lutas. Desnecessário dizer que se trata de uma interação corporal maravilhosa. Aliás, eu gravei uma sequência dessas lutas e mostrei para os meus alunos e alunas: puro teatro físico!

Imaginação e enredo

Voltamos às tais armas, aos brinquedos industrializados. De uma coisa eu desconfiava: os meninos não suportariam muito tempo esse brinquedo tão exagerado.  De fato, eles ficaram dentro de casa atirando um no outro os tais dardos de plástico. Mais uma vez, a imaginação torna-se cada vez menos despotencializada. Quer dizer, menos enredada. Isso mesmo, falo de enredo e ficção. Pois esses brinquedos tecnológicos e, diga-se de passagem, caríssimos, são pobres na criação de um mundo ficcional. Como assim? Não são a mesma coisa que os revólveres do nosso cowboi, celebrado com nostalgia na série Toy Story? Estaria a diferença no brinquedo físico ou numa cultura onde não há mais espaços para o brincar livre e espontâneo, característico da já antiga cultura das ruas? O que acontecia não era, na verdade, uma reapropriação, uma reinvenção antropofágica daquilo que a indústria cultural já nos impunha?

Certamente, de tudo isso um pouco. Na verdade, os nossos revólveres antigos tinham, no máximo, uma espoleta que fazia um barulho quando puxávamos o gatilho. Mas não era isso o que importava, pois afinal, brincávamos até com os dedos imitando revólveres. Haviam as pistolas inspirados na ficção científica. Mesmo assim, de um jeito ou de outro, a gente fabricava mundos – a definição de poética, do grego, poiesis. Pois o que interessava a nós era o enredo e a imaginação. Ou seja: a ficção.

Essas novas armas são diferentes: em primeiro lugar, elas são feitas para se atingir um alvo. Portanto, esses brinquedos se inserem noutra classe: a das atiradeiras, espingardas de chumbinho (essas últimas sim, são temerosas!). Há risco nisso? Acredito que pode haver algum, pois são projéteis mais ou menos macios, mas não deixam de ser projéteis. Porém, com certo cuidado (não se atirando de muito perto e no rosto, não parece haver perigo).

Em segundo lugar, elas são feitas para o consumo. Não estão muito à serviço do imaginar. As menores, me parecem mais próximas dessa necessidade de se produzir jogos simbólicos, enredos  e ficções. Isso o meu filho me comprovou: brincaram, num dia permitido na escola, com as suas pistolas, mas sem atirar dados. A imaginação voltou a funcionar!

Vamos pra rua!

Assim que empunharam suas armas pelo apartamento, os meninos logo apresentaram um alto nível de excitação psíquica. E devo acrescentar: um baixo nível de envolvimento sensível. É nisso que consiste, precisamente, minha avaliação. E não em julgamentos moralistas. Sem poder de fato conjurar o exercício de tiro ao alvo, pois estávamos em casa e na rua os tais dardos acabam sumindo. Esse tipo de brinquedo necessita de amplos espaços. Os meninos  na verdade nem brincavam. Então, tomei uma decisão: peguei uma peteca e disse: vamos pra rua!

A dificuldade foi imensa. Agora sim, o alvo exigia habilidade real. E mais do que isso: convocava o corpo todo. Pois, para jogar peteca temos que girar, subir, descer, pular. De fato, aqui também não se enreda num enredo imaginativo. Mas se enreda numa duração sensível. Depois de um bom tempo com esse jogo, propus que caminhássemos. Fomos passear e curtir à tardinha. Havia alguém na rua? Somente carros de jovens que passavam com os sons ligados no sábado à tardinha.

A constatação: não há mais meninos e meninas brincando nas ruas. Pelo menos na maior parte de nossas cidades. E os pais, idem.  Tente tirá-los da televisão ou da preguiça ou dos referenciais de consumo! Sim, parece que é essa a única alternativa terrível: os passeios nos centros de lazer e compra que são os shoppings center. Nada contra tudo isso. Vez por outra, um cineminha, um lanche, uma compra necessária etc. Porém, a pergunta que faço é esta: alguém sabe o que é passear de tardinha com os meninos e as meninas, sem fazer comprar qualquer coisa?

Depois da peteca, fizemos um pequeno passeio e propus que eles subissem em árvores. Isso mesmo: subir em árvores! Dei apoio, sustentação e know-how. Mais adiante, brincamos um pouco de corrida. E então, voltamos para a casa. Hora de preparar o jantar.

Senti  falta de uma coisa: uma boa partida de xadrez.

 Referências

Imagem: retirada do blog de Jamar S. Muniz

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

2 respostas em “Há vida fora do brinquedo industrializado e dos shopping centers”

mtas xs enfrento esta idéia de q a arminha gera violencia, mas as pessoas estão mtos convencidas…é bom ver nossa argumentação dita por outros….existe algum texto q reforce esta des-demonização dos revolvinhos?alías, creio q é justamente quem brinca com eles q não precisa dp ir ao ato

Concordo com você Lena. Quem brinca não precisa ir ao ato. Mas é sempre essa história moralista: de que a representação da violência gera violência. Debate antigo, que volta agora na discussão sobre o filme do Batman e o assassinato no cinema em Aurora, EUA. Como se os assassinos não se apropriassem de símbolos… E não foi um militar responsável pelo teste de explosaão de uma das mais poderosas bombas atômicos, num deserto, nos EUA, que fez referência a Shiva, deus da destruição? Então, o hinduísmo é o responsável pela corrida armamentista dos EUA na década de 60? É demais, não?

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