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Os jogos corporais e simbólicos da criança: entre a ficção e o real

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Volta e meia deparamo-nos  com o tema da violência e da agressão nos jogos corporais e simbólicos das crianças.  Nesta hora perguntamo-nos sobre os limites entre realidade e ficção. E mais: em que medida tais ficções, supondo que estejamos nesse campo, acabam por influenciar o comportamento real? Questões que se fazem recorrentes, principalmente nas práticas do Teatro-Educação, quando o real e o imaginário parecem se misturar. Ocorre de encontrarmos esses temas violentos e agressivos nos desenhos das crianças. Veja, por exemplo, as imagens em tela desenhadas por uma criança de 07 anos de idade: armas, ataques e batalhas, sangue escorrendo, terror…  No teatro isso é mais “dramático”, justamente porque os corpos estão ali, em interação.  A partir de Peter Slade (do seu já clássico O jogo dramático infantil), podemos entender que, no primeiro caso, o jogo é projetado (no papel, quando se trata de desenho, ou com objetos e bonecos).  E nos jogos simbólicos e corporais, o jogo é pessoal.  Nestes últimos, estamos envolvidos de corpo e alma.  E então, nos perguntamos mais uma vez: qual a natureza desses jogos corporais e simbólicos, quase sempre carregados de tais cenas agressivas e violentas?

O que pode nos afligir é justamente não saber onde está a separação entre ficção e realidade. Além disso, a própria presença em si desses temas leva-nos a indagar se, mesmo tratando-se de ficção, não estaríamos realizando um tralho pedagogicamente negativo. Se não estaríamos, enfim, estimulando a violência real através da violência representada. E volta a questão: se não está havendo uma mistura de uma e outra.

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Para entrar no assunto, acredito que primeiramente deveríamos nos desviar das visões moralistas sobre o tema da violência e da agressividade.  Em troca, poderíamos descobrir uma ética, seguindo uma trilha, por exemplo, deixada por Espinosa e trabalhada por Gilles Deleuze: ética como aquilo que concerne aos corpos – às misturas de corpos, ao que convém ou não aos corpos, em situações singulares. Um corpo é definido por Espinosa pela sua potência: por aquilo que ele pode.  Expor uma criança pequena a uma cena que ela mal compreende e não possui condições de elaborar não seria ético, nesse princípio. Por quê?  O que atinge a criança está além de sua capacidade de elaboração. Não será este, portanto,  um bom encontro.  Há misturas corporais que podem ser boas ou más. Diria Espinosa: o mal é um mau encontro. Como define tão bem Deleuze: um corpo (imagem, som, vivência, situação, pessoa) que nos afeta numa relação que não convêm com a nossa. Nesse caso, tal encontro diminuiria a nossa potência de agir. Estaríamos carregados de uma paixão triste.

Desse modo, exercitamo-nos numa ética: aquela que avalia cada caso, no seu contexto singular. Espinosa deixa muito claro: o que concerne à minha natureza é o que me traz alegria e aumenta minha potência de agir. Mas  é preciso insistir: não vamos confundir esse aumento com algo que excederia minha capacidade de ser afetado.  Portanto, a questão da violência e da agressão, como representações oferecidas ou vivenciadas em contextos diretivos (cursos, aulas, exposição às imagens ou acontecimentos), depende da capacidade de a criança, no contexto singular de sua maturidade, assimilar e elaborar tais conteúdos. Isto é, de realizar um bom encontro: aquele que potencializa sua capacidade de agir e não excede a de ser afetado.

Podemos, portanto, voltar ao jogo corporal e simbólico, já que nos despimos do julgamento moral e podemos nos exercitar numa ética.  Então, coloca-se a pergunta: o que ocorre nesses jogos corporais, nos quais as crianças atuam num limiar quase indiscernível entre violência real e violência representada?

Voltemo-nos para as imagens que ilustram o texto. Curiosamente, esse menino é hoje um roteirista e desenhista de quadrinhos.  Você pode notar,  nas duas imagens, que há uma presença constante de temas violentos. A primeira imagem  mostra uma guerra. E a segunda é de “terror”, com sangue escorrendo. Ora, essa é uma produção simbólica realizada pela criança. No entanto, em vez de uma análise “interpretativa”, eu tomaria outro caminho: o mapa que a criança realiza. Ou seja, a configuração dinâmica de suas experimentações. Gilles Deleuze nos mostra que a atividade psíquica precisa de  remeter os traços-trajetórias  aos afetos e vice-versa.

Nos desenhos em tela, temos cenários de acontecimentos. Parece que uma coisa vai saindo da outra. Há toda uma cinética (daí, no futuro, a paixão desse menino pela arte sequencial), uma dinâmica intensiva e extensiva. Na segunda imagem, um verdadeiro emblema-portal do que deve ser sentido como o pior. Ou será uma proteção contra os afetos destrutivos? Não importa, não saberemos, mas podemos dizer que  são esboços de um traçado e de um imaginado, um remetendo ao outro. No entanto, você tem o direito de  pensar: tem o efeito de uma máscara – conjurar forças estranhas e imensas, afastar o perigo eminente!

Winnicott, um psicanalista mostra que no brincar há uma zona fronteiriça entre o objetivo e o subjetivo. Ele fala do brincar como objeto transicional entre a afetividade materna e a cultura. Se a criança brinca, diz Winnicott, temos um incremento de sua potência de agir (numa leitura via Deleuze-Espinosa). O problema surge quando a criança não consegue brincar. Quando os afetos implicados – ou as forças do mundo que agem sobre o sujeito tornam-se tão pesadas que emperram a expressão.

Em minha experiência com crianças em diversos contextos (atividades dirigidas e atividades não dirigidas), pude notar os momentos  em que o brincar é sobrecarregado pelas forças do mundo que implicam na atividade. O brincar, assim como a arte, ganha potência quando há, primeiramente, umadesimplicação das forças que atuam sobre os indivíduos. Trata-se de um jogo entre implicaçãodesimplicação – e, aqui, estou seguindo o filósofo português, José Gil. Podemos dizer que o “tema” da violência ou da agressão, motivo desse texto, consta nessas forças que implicam sobre o sujeito. E quando a ação em curso não consegue realizar a desimplicação dessas forças, a criança não consegue brincar.

Essa é uma observação difícil, às vezes. Quando é que uma criança não brinca? Não diria que o real torna-se maior que a ficção, pois isso nos levaria a outros problemas que não poderia desenvolver aqui. Diria antes que o fluxo livre desse mapa, no qual incidem mutuamente trajetórias e afetos, encontra-se perturbado quanto a essas forças de implicação.

Observamos isso em uma situação. As crianças brincam muito em contatos corporais, até por volta dos seus 10 anos de idade. A minha observação, tanto como arte-educador quanto como criador, me diz que é necessário produzir um espaço entre. Uma distância. Os agarramentos das crianças são forças que implicam exercício de tônus, busca de contato, coisas que deveriam ser vistas com vias de conhecimento e de experimentação. A sociabilidade não é dada, para a criança, como o é para o adulto. E o corpo não é algo, ainda, tão desinteressante como o é para os adultos. Winnicott lembra, por exemplo, que um bebê que acabou de andar poderá girar como um “possesso” até cair aos risos… A expressão “possesso” é interessante: ele poderia ter dito, dionisiacamente…  Retomando os jogos corporais de contato, que muitas vezes viram lutas de fato, que tanto machucar de fato quanto se tornarem uma dança de contato, observamos algumas passagens de estados e limiares. Muitas vezes essas passagens se dão de modo meio indiscernível: entre a violência real e a violência simulada. A capacidade de brincar com a agressão física direta (o contato corporal, de um modo ou e outro, implica essas forças do mundo…) é mostra da maior ou menor liberdade das crianças. Ou, da sua dificuldade: tanto em lidar com a situação (sair-se, livrar-se) quanto em saber imprimir a força e a velocidade que permitem ao jogo um fluxo contínuo. Aqui, as crianças desenvolvem verdadeiras técnicas. E quando estas não aparecem, não temos mais um espaço entre. Outras demandas subjetivas acabam por se impor, e não temos mais o brincar.  Ou, então, quando um submete o outro. São, portanto, necessidades de outra ordem que se colocam no jogo. Os traços de expressão se fazem sobrecarregar e não conseguem um efeito de desimplicação.

Não é esse um jogo em que se ganha sempre. Ou seja, em que se consegue desimplicar-se com a leveza de um gato que, jogado para cima, cai macio com as quatro patinhas no chão. Nenhum adulto poderá dizer que no amor, no trabalho, na arte, se ganha sempre. Muitas vezes, as forças são maiores e nos sucumbem. No entanto, podemos inventariar nossa capacidade de modificar isso, de retomar nossa potência de agir. Então, como não poderíamos ver que as crianças muitas vezes sucumbem aos temas e às forças que se implicam nos seus jogos? Mas, aqui, vale uma advertência: a insistência numa linha de interrupção do brincar, uma dificuldade em encontrar vias de expressão em fluxo, deve ser acompanhada com muita atenção e cuidado. Como podemos ajudar essa criança? Pelo corte, com o trabalho sobre as equivalências: se o outro gostaria de ser tratado assim, de intervir para evitar o pior etc. Pelo corte e oferecimento de novos meios e traçados: vamos andar nessa corda, cuidado pra não cair! Ou seja, incrementando o nível da atenção, desviando-se do negativo e propondo novos mapas de experiência.

Como podemos observar nos desenhos citados, há um investimento nas linhas expressivas. E isso quer dizer:  uma tarefa que leva tempo e toma alguma extensão. É necessário trabalhar sobre o material. O que é uma característica essencial do brincar: uma duração, um percurso. Todo ato de brincar exige uma transformação do vivido em linhas e traçados. É sempre uma distância, um entre. Um meio a ser explorado. O mesmo pode ou não ocorrer nos brinquedos corporais de contato físico direto.

A nossa análise, então, deve ser conduzida para esse campo de habilidades, de mapas e meios que são traçados nos jogos simbólicos e corporais das crianças. De fato, torna-se, muitas vezes, difícil fazer a leitura disso. Quase sempre, na vida escolar, as brincadeiras infantis são vistas como dispêndio de energia e não como fluxos, linhas e mapeamentos produzidos numa relação de implicaçãodesimplicação. Ou como economia da libido. Fazer o mapa dos afetos implicados num jogo corporal e simbólico é um grande exercício para educadores, e para pais também. Porém, nossa atenção cotidiana está dirigida para o consumo, para as atividades que visam fins, deixando de perceber a imensa riqueza que os jogos e brincadeiras infantis proporcionam ao observador atento. Sempre digo: se quer conhecer seu filho, brinque com ele. E se o educador quer conhecer as crianças, observe e interaja com elas em situações não diretivas.

Por fim, cabe ver que a violência e a agressão, presentes nos jogos infantis, constituem as potências do falso. E o que elas possuem, de fato? Não o verdadeiro, que não é disso que se trata na arte e no lúdico. Mas sim a força que uma determinada configuração adquire. Saímos, assim, das aporias entre realidade e imaginação para entrar nas potências do simulacro.

Mais referências –

Gil, José. A imagem nua e as pequenas percepções. Lisboa: Relógio Dagua, 1996

D.W. Winnicott. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

GILLES, Deleuze. Crítica e clínica. São Paulo, Perspectiva, 1997.

MADARASZ, Norman. A potência para a simulação: Deleuze, Nietzsche e os desafios figurativos ao se repensar os modelos da filosofia concreta. Educ. Soc.,  Campinas,  v. 26,  n. 93, Dec.  2005 .



Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

10 respostas em “Os jogos corporais e simbólicos da criança: entre a ficção e o real”

Oi, Luiz Carlos,

obrigada por me enviar via e-mail o link desse seu interessante texto, sou educadora musical e mãe de um bebê de 1 ano e 8 meses, portanto me interesso muito por esses temas… mais uma vez, muito obrigada!

Abraços,
Carolina.

Carolina,

Então você irá gostar muito de ler Winnicott. A teoria sobre o objeto trancisional (e o brincar entra aí) é muito interessante. E não deixaria de lembrar: tocar e abrir espaço, sempre!

Abraços

Luiz Carlos

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Belíssimo texto, como sempre, Garrocho. E chegou numa hora em que tenho pensado muito nessa questão da violência, em como a História e os telejornais nos mostram o tempo todo grupos que se posicionam de maneira violenta contra outros grupos. E as crianças no meio disso tudo.
Sempre adorei esses desenhos “de guerra” e “de sangue” pelo potencial expressivo e gráfico e sempre achei que as muitas “lutinhas” são importantes para o crescimento saudável das crianças, já que nossa natureza humana é assim dupla, todos temos nosso lado agressivo e perverso com o qual precisamos nos haver num momento ou n’outro. As crianças tentam elaborar isso tudo seja no desenho, seja no jogo. Mal nenhum nisso, desde que não incorramos em dois erros cruciais: ser manipulados como massa violenta ou transformar em ação direta o que sentimos sem considerar o outro. Sentir é sempre lícito, o que não é lícito é agir como se o outro provocasse nossas ações violentas por ser como é. Aprendizagem difícil essa, com a qual creio que o Teatro colabore muito.
Incrível como no jogo infantil encontramos tantas possibilidades de análise da humanidade e da desumanidade que habitam em nós. Excelente ferramenta pra compreender a pessoa, não?
Abração!

Cláudia,

Pensamos juntos, por essas trilhas, quanto ao “potencial expressivo e gráfico”, como você diz.

Mas você também coloca questões que merecem nossa atenção, nós que vivemos em torno e no meio do brincar e de sua cultura. A história simbólica e física de nossas relações com a agressão e a violência. A televisão e a indústria cultural sempre enfatizaram esse aspecto dualista: odiar o inimigo, querer destruí-lo. Nossos soldadinhos de chumbro, depois de plástico, os filmes de guerra (índios e alemães eram sempre os inimigos, depois vieram os alienígenas e os “seres do mal”, mais abstratos mas nem por isso mais maniqueístas)… E, ao lado disso, os jogos realmente violentos (fuzilamentos, tortura e crucificação do calango e outras formas de crueldade…) O que corrobora a tese de que a infância não é uma coisa isolada do resto da sociedade, não é um universo de pureza. Aliás, sempre achei que os jogos e brincadeiras cruéis eram a contraparte de uma sociedade repressiva, violenta internamente: miséria sexual, exploração, silêncio quanto à expressão do sentimentos, competição voraz pelo sucesso, o núcleo familiar como paraíso egoísta (e ao mesmo tempo neurótico e sutilmente violento), castigo físico em crianças e por aí vai… São características que, para mim, não podem ser dissociadas do pós-guerra, da constituição do tecido social, da marginalização dos pobres. O jogo e a brincadeira vilentos não teriam algo em comum com isso? Já não estamos mais nos traços expressivos, ou antes na sua submissão e imitação dos ritos sociais mais cruéis.

Então, não é este um bom tema para o Quintarola?

Abraços

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Então, Garrocho, eu fico pensando muito sobre a questão da violência no jogo. Não acho que seja só imitação. A princípio creio que nós temos naturalmente um lado agressivo que descende das comunidades humanas mais primitivas e que isso de algum modo vaza mesmo nas pessoas mais pacíficas, seja até em forma de sublimação. Uma certa agressividade inclusive faz bem, serve pra se defender, pra se posicionar. O ser humano tem lá a sua crueldade (relacionada à disputa de poder?) e resta saber/aprender a elaborá-la e a colocá-la nas medidas justas, encarando-a de frente, sem nega-la ou depositá-la no outro. Por outro lado, existe sim um estímulo social muito forte a todo tipo de violência, na história de cada pessoa e da humanidade como grupo. Acho que o jogo violento representa e busca compreender isso tudo e suas inter-relações, pois o jogo é tão humano quanto nós. Uma criança que joga de modo violento dentro de uma realidade violenta é diferente de outra que o faz dentro de uma realidade mais pacífica. Como disse um educador italiano que ouvi outro dia (Agostino Portera), “o jogo, como as pelavras, pode ser muro ou janela”. “De brincadeira” se faz também tanta coisa incorreta, não é? Tão aí o bulismo, o vandalismo, os jogos políticos, de negócios, as intrigas etc. Enfim, dá pano pras mangas e posso pensar sim num post lá no Quintal sobre isso rsrsrs Abração!

Cláudia,

Muito interessante essa sua breve exposição sobre jogo, violência e infância. Você traz uma afirmatividade e uma potência para o nossa agressividade, retirando-a do moralismo e da culpa.

Acho que seu pensamento pode dar mesmo um belo texto para o Quintarola.

Abraços

Tio Luiz,
Fui procurar artigos sobre brincadeira e violência, olha o que eu achei “MEU TIO”.
Fiquei muito satisfeita, pois o Daniel que agora está com 4 anos está exatamente nesta fase.
Monstros, terror … e eu gosto muito da abordagem da escola que tem trabalhado com aulas de contação de histórias e representação livre das crianças. E também com muitos jogos.
Adorei a matéria vou repassar para a escola e pais.
Beijo tio estou com saudade.

Érica,

Bela surpresa sua visita. Legal que você tenha curtido a abordagem. De fato, as pessoas se assustam facilmente com essa “violência” simbólica dos jogos infantis. Há que ver, escutar e aprender muito sobre isso.
Um grande abraço

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