Categorias
Geral

Quando perdemos o corpo

Do blog New D (nomadology), uma interessante postagem sobre perda do corpo e infância, por Rogério Felipe:

“Desde que perdemos o corpo, e isso geralmente ocorre no instante mesmo em que deixamos de ser crianças, ou melhor, no momento em que deixamos de estabelecer conexões com a(s) criança(s) que nos habita(m), e que ainda assim, não nos abandonará(ão) jamais. Quando nos infantilizam, ou nos infantilizamos (eis uma perversa potência colaboracionista a irromper a cena), pois uma criança não é jamais infantil, nunca foi nem o será, ao menos naturalmente. Há aqueles entre nós que não conseguem separar o infantil da criança. Parece até que passam cola, um no outro (e em si próprios), criança infantil. Perdemos o corpo, fomos “desapossados” dele, do corpo, que passa a ser “mercadoria infantilizada”. E você chora, esperneia e faz pirraça perante a estranha constatação da ausência do corpo. A ausência do corpo não evoca em nós as forças de um incorporal ( tal como o estóicos definiram este conceito), pelo contrário, o não-corpo ou sem-corpo é ao mesmo tempo sem-alma.

Categorias
Geral

O brincar: percurso de leituras (1)

Uma leitura que me marcou muito foi Hommo Ludens de Huizinga. Lembro-me de como fiquei tomado pela densidade do texto. O que me tocou em primeira mão foi a noção de que as instituições mais sérias, de certo modo, não passam de jogo. E em outra mão, marcou-me a noção de autonomia desse espaço que é o jogo:

“Ele [o jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida cotidiana.”

Comecei a estudar Piaget. Foi por força da novidade que era o construtivismo na educação. Dois livros tiveram seu lugar: A formação do símbolo na criança e O juízo moral na criança.

Categorias
Arte-Educação Geral infância

Encontro em Cuiabá: a produção teatral para crianças

Estive em Cuiabá no dia 06.10 para discutir a Produção Teatral para Crianças, na Mostra Internacional de Teatro Infantil.

A minha apresentação teve por base as relações entre a produção cultural e a cultura da criança. Entendo que a produção cultural não pode deixar de ser contextualizada: o significado da infância em nossa sociedade. Para tanto, tomei como linha mestra o que Clarice Cohn chama de “a criança como sujeito cultural ativo e produtor de sentido sobre o mundo” (Antropologia da Criança, ed. Jorge Zahar).

Contexto: a criança como produtora de cultura

Esta abordagem traz, assim, uma “novidade” que, entretanto, encontra barreiras: a) por parte de um sistema de ensino que não consegue aceitar a criança fabuladora, isto é, a criança como produtora de cultura; b) por parte da indústria cultural que somente trata a criança como mera consumidora (e muito da produção teatral destinada a esse público vai nessa direção); c) pelo sistema da reprodução social, que insiste em ver a criança como o ser que “ainda não é”, que deve ser objeto de investimentos para “ser” no futuro. 

Categorias
Geral

Cidade do Recife: cultura da criança e educação infantil

Estive na cidade do Recife, nos dias 09 e 10 de setembro, para participar de um encontro de Formação Continuada de Auxiliares de Desenvolvimento Infantil, promovida pela Secretaria Municipal de Educação.

Foram 02 dias de conferências sobre o tema “Traçando o mapa do brincar: trajetos, ritmos e rotas imaginárias“, acompanhadas de uma oficina. É a terceria vez que vou à cidade do Recife e arredores (Camaragibe e Cidade do Cabo de Santo Agostinho), convidado a contribuir nos projetos e programas de educação infantil.

O menino é o ancestral 2

Sigo o meu amigo que segue o seu filho de um ano e meio no Parque Municipal de Belo Horizonte. Ele é músico, ator e brincante.

Tempos e espaços de pai e filho juntos. Estamos no âmbito dos cuidados, onde um macho também cuida da criança. E o que um e outro fazem? Let it be (deixa rolar). Como assim? O pai ficar perto, observa. O menino escolhe a partir dos acasos que entram no seu campo perceptivo, sensorial e motriz. Melhor dizendo, faz nomadismos. O tempo todo a criança já está fazendo o seu território andar. O mundo sob seus pés se põe em movimento. Mesmo que esteja parada.

A criança pára em movimento: há sempre desejo. E quando não há intenção direcionada, há o que meu amigo e eu chamamos de errância: olha em volta, deixa que as coisas possam emergir de um campo de virtualidade e produzam, por si mesmas, novas ocorrências. Vê o banco do parque. Quer subir. Esforça-se. O pai o ajuda vocalmente – com sons de esforços e encorajamentos – mais deixa que o menino o faz. E junto com ele comemora a conquista.

Aqui está o primeiro lance: o pai/a mãe – aquele que cuida – recebe, aceita, valoriza e encoraja. Tudo o que o menino faz é de interesse do pai. Observa cada solução de problemas motores (o pezinho preso no ato de subir, a dificuldade de soltá-lo etc.). E com essa aceitação, o pai demora-se no tempo e no espaço. Permite-se viver sem projeções, sem finalidades. Sem pressas. E quem ensina isso?

O menino, o ancestral.

Referências:

O menino é o ancestral
Amar e Brincar – fundamentos esquecidos do humano

Brincar: reserva do porvir

A cultura lúdica da infância é a nossa reserva de porvir. E uma sociedade será mais ou menos aberta à renovação na medida em que consegue acolher as crianças e seu mundo de experiências. Mesmo que seja na lembrança.

De Miguilim, de Guimarães Rosa, guardo entre outras coisas o traço de um menino cuja dor esbarra na dor dos adultos cercados na sua própria ignorância. Um pai violento e uma mãe que sempre olha longe. Talvez por isso Gilles Deleuze diz que a infância é também triste: estamos todos submetidos ao outro.

Quando senti que eu estava em uma situação que não cabia de tanto sofrimento, eu guardei a foto de menino na escola que ficava em cima da mesa. Tirar o menino de lá foi meu primeiro gesto…

O que pode nos guiar, artistas, educadores, gestores públicos, empreendedores em relação à infância? Uma única coisa: acolhimento do porvir- isso o que a criança traz.

Por um ardil da natureza a criança guarda no brincar o que os adultos largam à margem, enquanto tentam dominar e submeter a si mesmos, a natureza e os outros.

Isso significa acolher a presença do outro. Crianças vivem no presente contínuo do brincar: elas nos ensinam o caminho. Disso, não restam dúvidas. Mas, há espaço para o brincar em sua vida, na sua escola, no seu mundo? Ou tais lugares já estão previamente definidos, seguindo padrões curriculares, pistas já percorridas, horizontes pré-fabricados?

Do brincar e dos fins – I

Ando pelos becos da Vila Nossa Senhora de Fátima, em Belo Horizonte. É sábado de manhã e uma menina de uns doze anos reúne em sua volta um grupo de meninas menores. Elas brincam de boneca e de fazer comida com terra. Enchem as vasilhas de brinquedo, fazendo formas. Percebe-se claramente nessa atividade a preocupação da menina mais velha em cuidar das crianças menores. Possivelmente esta é uma tarefa doméstica, isto é, não lúdica, mas concreta, bem real. Talvez o fim esteja lá: é preciso tomar conta das menores. E é justamente nisso que entra o espírito lúdico: o fim é transformado em meios que se dilatam através do envolvimento sensível com a experiência (mexer com terra, criar um cenário doméstico), satisfazendo necessidades que a finalidade posta (tomar conta das irmãs menores) não pode satisfazer. Necessidades que dizem respeito ao desenvolvimento daquelas crianças, inclusive da mais velha.. A brincadeira, portanto, passa a ocupar o centro da atividade.

Nessa visada do brincar através da teleologia das ações humanas, a utilidade de determinado produto que delas pode resultar é outro ponto de destaque. Um marceneiro faz uma cama para que se possa nela dormir, podendo igualmente servir de valor de troca. Uma criança faz uma cama para sua boneca dormir – não tem esta ação de preparar ou de fazer a “cama” uma finalidade extrínseca ao jogo. Diferentemente do adulto que, ao fabrincar um objeto, elege os meios para se atingir os fins, a criança faz dos meios o fim. O filósofo Emanuel Kant, ao abordar o juízo de gosto, fala de uma finalidade sem fim, de uma finalidade puramente formal. Uma finalidade formal não serve para nada… Serve para criar – serve para brincar.

Blocos de infância I

“… a criança persiste mais tempo e menos
envergonhada no artista que em qualquer outra classe, e muitos artistas
sentem-se felizes por isso”.

Eric Bentley

Jogo sem regras

A diferença entre brincar e jogar é um tema recorrente. O video-artista e fabricador de poéticas outras, Marcelo Kraiser, falou-me de um jogo que não teria regras.

A conversa era sobre improvisação. Marcelo é co-idealizador, comigo, do projeto Improvisões, que proporciona a interação ao vivo, diante do público, de artistas de meio heterogêneos (imagem, corpo e som), numa criação não hierárquica.

No caso do jogo sem regras, Kraiser refere-se a artistas que compõem numa forma de jogo. Algo como apostas que eles realizam e nas quais se arriscam.

Lembro do controle, jogo de bola que pode ser praticado sozinho ou com parceiros. Você não deve deixar a bola parada no chão, lembrando que se trata de um jogo de futebol (sem colocar a mão na bola e, no caso, sem goleiro). Essa a sua aposta. Atira com o pé a bola na parede, que irá ser rebatida como se fosse um adversário ou parceiro, você a apanha com o pé, ou outra parte do corpo e continua o controle. Aliás, filósofo Gadamer, em Verdade e método, aborda o jogo, lembrando que a bola só é interessante porque é redonda, fungindo, por isso, ao nosso controle.

O que quer dizer um jogo sem regras? O jogo controle teria uma regra básica: não deixar a bola parar no chão. As regras são implícitas aos jogos, como fica? Mas existem regras e regras.

Mais do que uma regra, é uma aposta, segundo Marcelo Kraiser. A regra de que se fala aqui é aquela que prediz o resultado. Ela direciona a experiência numa estruturação determinada. Algus jogos são chamados, assim, de jogos de regra, como Piaget, um dos estudiosos classifica. No entanto, ele mesmo fala de um jogo de exercício (um jogo sensório-motor baseado na pura repetição) e no jogo simbólico (no qual se dá uma vivência ficcional). Tais classificações, entretanto, não me satisfazem mais, até porque elas estão montadas numa estrutura de desenvolvimento do sujeito cognitivo.

O jogo de regras, entretanto, é o mais difundido pelos sistemas pedagógicos, justo pelo seu caráter de controle e, posso dizer, moral. Durante alguns anos acreditei nisso, imagine! Os sistemas de educação te formam para apreender as coiasas por essas vias. Mas foi o brincar exploratório e sensível que me libertou dessa junção entre consciência moral e jogo. E não é atoa que recusei os jogos teatrais como processo de treinamento e criação em teatro e, principalmente, em arte-educação.

Portanto, mais fecundo para a criação artística e a cultura do brincar em suas linhas de errância, é o jogo como aposta. Eu projeto algo numa certa direção (o que vai), mas a resposta, não está no meu controle (o que vem). Algo a ver com o desejo como aposta. E aí, entre uma coisa e outra, as variações são infinitas.

O menino é o ancestral

Vejo o meu amigo com o filho pequeno, com ano e meio de idade. O pai é um brincante, artista e pesquisador.

Nômades, os dois. O menino às costas, o pai andando pelas ruas e avenidas. A cidade corre com a pressa dos motores e corações acelerados, enquanto os dois a atravessam oblíqua e panoramicamente.

Quando no chão, o menino pode explorar o mundo nos seus próprios pés. O pai ri o tempo todo. E o menino distancia-se sob o olhar seguro do pai – caminha pelas bordas e volta para ir mais uma vez ao encontro do novo. Juntos e separados. O menino sempre traz notícias do mundo. Produz acontecimentos. Inventaria sensações. Dobra paisagens. Cria espaços e durações. Trajetos que são linhas de errância.

E o pai pesquisa, estuda, maravilha-se com o que o filho traz e fabrica nessa exploração sensível.

É assim que tem de ser: o menino é o ancestral.