O que a criança ensina aos adultos

Vi num vídeo sobre o Orçamento Participativo da Educação, de Recife, o depoimento de um menino:

“A criança ensina três coisas aos adultos:estar sempre alegre, não ficar parado e chorar muito pelo que deseja”.

Marina Machado: a criança, o brincar e o teatro

Marina Marcondes Machado vem pesquisando há anos a cultura lúdica da infância e suas conexões com as artes, especialmente com o teatro. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Marina e tê-la como companhia numa oficina com educadores no Encontro Mundial de Artes Cênicas, em Araxá/MG. E descobrir afinidades: a infância como o plano sobre o qual educação e arte deveriam se voltar. Infância-memória e infância-presença: os meninos e meninas que fomos e as crianças todas com quem nos deparamos no dia-a-dia.

Marina publicou três livros muito preciosos: O Brinquedo-Sucata, Poética do Brincar e Cacos de Infância. O primeiro apropria-se especialmente das teorias de Winnicott, que é o psicanalista que escreveu o genial O Brincar e a Realidade. O livro é um clássico. E Marina faz uma bela introdução ao pensamento de Winnicott, expondo esse espaço que está entre o objetivo e o subjetivo, que é o da experiência lúdica. Já Poética do Brincar parte com Bachelard e abandona-se nesses vôos. Em Cacos da Infância ela discute as relações da infância com a criação teatral, especificamente com a questão do personagem criança.

Uma autora para ler e reaprender sobre a infância e o brincar.

Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola

Quando comecei a brincar com crianças – e era precisamente isso – eu não sabia nada sobre Arte-Educação ou Teatro-Educação. Apenas me deixava levar pelas linhas de errância do brincar exploratório e sensível das crianças.

Estava trabalhando na escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte, e era o ano de 1974. O fato de fazer teatro – e eu começava como ator – não me trazia nenhuma vontade de impor qualquer codificação às crianças. Brincava no recreio, em meio a areia, terra, jabuticabeira, goiabeira e um zumzum maravilhosos de crianças. Entretanto, somente anos depois, pude perceber que aquele plano, o do brincar, carregava as potências desterritorializantes que hoje busco para a criação cênica.

Com as crianças de 06 anos que deixavam a educação infantil, fiz uma apresentação que tornou-se exemplar para mim, hoje. Explico: de um tipo de ritualização cênica que não envolve a distinção tradicional entre palco e platéia, como é comum nas codificações dos jogos teatrais. E que fogia, além disso, às exigências tão comuns de exibirem crianças em ocasiões festivas. Os pais e mâes deram os braços e fizemos um longo corredor.. As crianças, então, engatinhavam por cima dos braços cruzados, atravessando uma ponte de corpos. Depois, brincávamos de esconder e as crianças faziam sons para que os pais as encontrassem.

A criação partiu de mim para as crianças. E não vejo problema algum nisso. Naquele momento, de tanto beber na fonte do brincar, encontrava-me livre para fazer, eu também, um convite em direção ao brincar, envolvendo também os adultos. Organizava o ritual, a festa, o encontro. Mas na direção das crianças – o que elas me forneciam quando brincávamos juntos.

Ali germinava um pensamento que, muitas vezes, deixei perder, em meio a tanta psicopedagogia que me abafou os sentidos durante anos. Um germem poderoso: a teatralização como ritual parcipativo. Acrescento nisso a possibilidade de o educador se envolver com o brincar. Não para enfeitar, arrumar, exibir crianças etc. Mas sim para se perder por uns momentos também. Consciente disso. Buscando a experimentação. No caso: um modo dos corpos se encontrarem num espaço e num tempo que não seja do auditório, da exibição, da cena codificada, da sociabilidade convencional. Fizemos uma ponte de corpos.

Obviamente, esse é apenas um dos caminhos que se abrem. Eu devolvia às crianças, pelo meu olhar, os traços de brincadeiras cênicas que elas viviam no cotidiano. Curiosamente, minhas aulas não eram nomeadas de teatro, mas de “aventura perigosa”. Hoje, consigo perceber conexões e ressonâncias com o campo da performance art. Veja bem: não estou dizendo que uma coisa é a outra. Antes disso: elas se tocam…

O teatro pós-dramático, a performance art, os hibridismos em arte, tudo isso dialoga com as linhas de errância do brincar. A Arte-Educação pode aprender muito com isso. No mínimo: os caminhos são múltiplos e diversos.

O brincar como exploração sensível e a Arte-Educação

Este blog tem feito, sempre, conexões entre o brincar e a criação artística. No caso da Arte-Educação, tenho insistido nas linhas de errância do brincar como pensamento-impulso para a fabricação de mundos sensíveis.

O brincar, no entanto, é sempre visto com uma certa desconfiança:
– Um ponto de vista espontaneísta, sentimental e idealista este de tomá-lo como modelo e/ou referência de criação.

Não é nada disso. O brincar, nas suas linhas de errância, realiza conexões para a criação artística nos seguintes aspectos:

1. Por se uma organização poliforma e perversa da libido, o brincar exploratório e sensível não se deixa categorizar e nem submete hierarquias (no corpo e nas paisagens que fabrica);

2. Potencializa, além disso, um campo de pura virtualidade: pertence a um universo não-diferenciado – como ocorre com as fronteiras das disciplinas artísticas nos seus nichos históricos de desenvolvimento (teatro, dança, artes-plástica, poesia verbal, poesia sonora, música etc.);

Por esses fatore potenciais, o brincar permite que os arte-educadores abandonem os programas de ensino codificadores (codificação do teatro e seus nexos de significado fechado entre audiência e atuantes, como ocorre nos diversos sistemas; codificação da música tonal etc.). Assim, o brincar, ao desobrigar os arte-educadores de se aterem à tarefa de decodificar a arte, libera imensa carga de energia criativa. No entanto, é preciso muito treino e muita dedicação para entender o que corre no brincar exploratório e sensível. E, mais ainda, para a realização de conexões com a criação artística. E como potencialidade pura, aponta para conexões entre o nível pré-expressivo, como visto pelo encenador Eugênio Barba, ou pré-figurativo, como visto pelo músico Koellreutter.

O brincar não é modelo para coisa alguma. Ele é a coisa.

Referências:
– Imagem: Miró (
1893-1983)

A criança e o contato corporal

Norval Baitelo Júnior, um dos nossos grandes pesquisadores das artes do corpo como mídia primária, indicou-me um livro há alguns anos atrás: Tocar – o significado humano da pele, de Ashley Montagu. ressaltando a importância do contato corporal, principalmente com as crianças. O autor mostra como é vital para a sobrevivência dos mamíferos o contato corporal.

Também por outras vias, descobri a importância do contato corporal. Sempre que vejo uma criança adoecendo com freqüência, a primeira pergunta que eu faço para quem cuida é: você toca o menino/a menina? Você faz massagens na criança?

Nossa cultura, afro-descendente, é uma cultura de jeito de corpo, brincante, afetiva. Mas as pessoas vão perdendo esses jeitos: deixam de ninar, deixam de embalar. Os adultos não conseguem estabelecer um contato corporal afetivo e saudável entre eles e transportam isso para o seu relacionamento com as crianças. Uma das artes marciais mais interessantes sobre esse aspecto, é o Aikido. Tive, através do Sensei Ichitami Shikanai, residente em Belo Horizonte, do Nakatani Dôo, a felicidade de descobrir a importância da sensibilidade corporal. O Aikido é uma arte marcial cujo nome diz caminho de união com a energia (nossa e do adversário). Aliás, a técnica do contato-improvisação, desenvolvida peçp bailarino e coreógrafo estadunidense, Steve Paxton, inspirou-se em muito no Aikido: o contato corporal. Shikanai enfatiza a sensibilidade do toque, o conhecimento das intenções do adversário, o caminho sensível.

Assim, faço aqui uma pequena lista de estratégias de contato corporal para crianças:

– Para amanhecer:
Cheire muito a criança, entre em contato com o seu corpo;
Abrace;
Massageie a região em volta do umbigo, com movimentos circulares, primeiro para a direita, depois para a esquerda – deixe ampliar suavemente para o tórax;
Massageie a sola dos pés demoradamente;
De pé, dê um longo abraço, bem demorado.

– Para brincar:
Role com a criança no chão;
Deixe que ela deite sobre você (você de costas para o chão, ela de bruços sobre você), permancecendo nessa posição demoradamente;
Brinque de modular: você fecha os olhos e a criança modula seu corpo, depois o contrário;
Descubra o tônus dos corpos: acolher (fechamos sobre o nosso centro no umbigo), expandir (abrimos o corpo a partir do umbigo como uma estrela);
Brinque de lutar.
Faça yoga juntos.

Obs.
É importante que o contato corporal seja cuidadoso. Você deve ficar atento também para descobrir sempre os espaços que se abrem nos contatos corporais, desviando do apego, do contato “meloso” – busque liberdade. Há sempre em cada contato corporal um espaço entre – vazios que se instalam e que se tornam promissores virtuais.

Para saber mais:

– MONTAGU, Ashley. Tocar – o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano.
Body Mind Centering
Movimento Autêntico
Contato improvisação

Olhar-criança

Deleuze diz em Francis Bacon: lógica da sensação, que “de um outro ponto de vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância.” Para o pensador que se avizinha do caos para torná-lo mais sensível, “há uma comunidade ds artes, um problema comum.” Tomo essas colocações de Deleuze, extraídas do contexto em que ele focaliza a obra do artista plástico Francis Bacon, para repensar os lugares a que destinamos as artes quando se tem em mente a Arte-Educação.

Isso é teatro, instalação, artes plásticas ou oque? Esta é a pergunta que procura estriar, pontuar e classificar o flutuante universo da criação artística.

Quando se fala em Teatro na Escola, como venho insistindo nesse blog e nas minhas perambulações em espaços diversos (de formação de atores, de trocas com pesquisadores da dança, de discussão com educadores…), tudo parece remeter aos códigos teatrais que devem estar subsumidos no sistema pedagógico. Quando se fala, nos cursos de licenciatura em teatro, no tema, quase sempre temos o enfoque dos problemas do teatro segundo uma parte de sua história. E como nos lembra Fernando Pinheiro Villar, toda história é parcial e a do teatro é uma das mais parciais, Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Grotowski. Parece que a cena fechou-se num ciclo de desenvolvimento linear, acumulativo.

Por tudo isso, faço um caminho oblíquo, entre tantos desfiles históricos. Trago, para tanto, o olhar-criança. Por outras vias, uma lógica da sensação.

Presenciei, num espaço em que as crianças da Vila Antena, em Belo Horizonte, ficavam nos horários em que não estavam na escola, a criação sutil de dois meninos por volta de seus 7-8 anos de idade.

A professora separava tiras muito finas de papel crepon juntamente com as crianças, para decorar algumas caixas. Ou seja: o de praxe nas pedagogias antigas de ocupar as crianças com alguma atividade construtiva. De repente, dois meninos esticaram uma dessas tiras, que possuía mais de 4 metros e foram se deslocando para fora da sala.

Criaram um espaço-movimento-instalação. Tomavam o cuidado para que a fita tão fina não se rompesse e foram descendo as escadas. A coisa que criavam (seu envolvimento corporal, o desenho-trajetória da fita vermelha, o seu contorno nas quinas das paredes e muito mais) era muito bonita, precisa e sensível. De repente, a professora ralhou com os meninos e mandou que eles parassem com aquilo!

Ela não havia aprendido a ver outra coisa que não as caixas prontas. E, possivelmente, uma pessoa formada nas escolas de teatro acharia apenas curioso, pois também não aprenderam a ver outra coisa que não a aprendizagem dos códigos teatrais.

Precisamos de um olhar transdisciplinar: um olhar-criança.

A questão que permanece: como inserir aquela forma num sistema de circulação de criação-recepção de arte. Ou ela deveria permanecer como simples brinquedo temporário?

Os circuitos de criação-recepção são ritualizações lúdicas do nosso cotidiano. Saber reinventá-los é a tarefa de artistas. Um olhar-criança pode trazer novas relações e possíveis. Para isso, é preciso que adultos saibam pesquisar esse modo de habitar o mundo que é o brincar sensível e exploratório da criança.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007

Teatro pós-dramático e educação II

As potências do teatro pós-dramático em relação à educação (ou melhor, ao Teatro-Educação), tomam o foco novamente. No blog em que deflagro questões sobre estética contemporânea, nomadismos e criação cênico-corpórea, fiz uma postagem intitulada Do teatro pós-dramático e das dramaturgias híbridas, no qual cito o número especial da revista Humanidades, da Editora da UnB, dedicado a essa vertente da criação cênica. Um dos artigos é o de Maria Lúcia Pupo, que discute justamente as perspectivas do teatro pós-dramático, na análise de Lehmann, em relação à educação.

No artigo, Sinais de Teatro-Escola, Maria Lúcia Pupo pergunta:”haveria procedimentos específicos que chegassem a configurar uma pedagogia para a cena pós-dramática?” A autora faz essa pergunta no recorte de uma “ação educativa proporcionada pelo exercício e pela função da cena por parte de pessoas de qualquer idade qu evivam processos de aprendizagem em teatro, sem, no entanto, possuir qualquer vínculo profissional com a arte”.

Maria Lúcia apresenta as principais características do teatro pós-dramático, entre elas, a de ser um teatro que realiza a transgressão dos gêneros, a negação da fábula, a presentificicação, a recusa da síntese em troca da busca de uma “densidade em momentos intensos”. Pupo ainda fala da não-hierarquia das imagens, da presença no lugar da representação, de uma corporalidade autosuficiente, entre outros aspectos. Para a autora, há certos exercícios teatrais que se caracterizariam antes por não definirem situações dramáticas ou configurações de personagens. E que podem ser acionados, acrescento, como linguagem cênica.

Trata-se de um traço pós-dramático a inserção do real na ficção, de modo que os eixos espaço-temporais, em sua concretude e fisicalidade (ou materialidade cênica) possam ser a própria textualidade cênica. Ou seja, a própria linguagem da cena. Assim, o que antes poderia ser tomado, no teatro dramático, como treinamento e processo que não deveria ir para a cena, sendo abandonado antes, passa a fazer parte do resultado.

Não posso deixar de citar a experiência pioneira do projeto Laboratório: Textualidades cênicas contemporâneas, projeto da Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura, com curadoria de Fernando Mencarrelli e Nina Caetano, que difunde e trabalha na formação como criação para uma cena pós-dramática. O projeto traz especialistas que discutem essa criação contemporânea, proporcionando aos núcleos de criação inscritos, oficinas. Na versão de 2007, André Semenza e Fernanda Lippi do Zikzira Physical Theater, com sede em Londres e em Belo Horizonte, dialogam com os criadores do projeto, não no sentido de proporcionar uma formação, mas de, juntos, fazer um mapeamento dessa criação.

Por fim, acrescento outra linha: a cultura do brincar. Na direção proporcionada pelo de Maria Lúcia Pupo, tomo por tarefa a investigação dos procedimentos técnicos de criação inspirados nas linhas de errância do brincar. Entendo que a brincadeira exploratória e sensível da criança fornece elementos que podem ser esquisados pelos artistas cênicos interessados no pós-dramático. Modos esses antevistos por Maria Lúcia Pupo, quando ela aponta para as potências de uma pedagogia teatral pós-dramática: aquela em que se dá a “instauração de uma desordem”.

Referências:

PUPO, Maria Lúcia. Sinais de Teatro-Escola. In
Humanidades, edição especial. Brasília: Editora UnB, novembro de 2006.
LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.

Postagens:
Teatro Pós-dramático e educação
O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda – Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.

Projeto Bira: cultura do brincar na região amazônica

O site do Projeto Bira – brincaderias infantis da região amazônica, coordenado por Renata Meirelles e David Reeks, é maravilhoso. Há uma versão em português e outra em inglês, fique atento. E você ainda pode ver um vídeo sobre o projeto. Há descrições de brincaderias e outras informações.

Renata Meireles é uma brincante que vem pesquisando e difundido a cultura do brincar da região amazônica por diversos lugares, do Brasil e dos EUA.

Quem pôde viver um pouco desse mundo que a industrialização vem engolindo sabe o que é isso. Interessantes que a maior parte das brincadeirais e brinquedos são encontradas em outras regiões. Terreno fértil para pensar a infância e sua cultura como uma manifestação universal.

Obs. Imagem: do site do Projeto Bira.

O Teatro-Educação e sua doença

Aplicação de um saber prévio: eis a doença que aflige o Teatro Educação. Necessidade de alicerçar a criação em elementos extraídos das ciências do desenvolvimento humano: eis a doença agravando-se.

Por que falo de doença? Nietzsche dizia que um dia a arte ainda seria a nossa medicina. Se entendermos por aí uma prática-pensamento de Teatro Educação, as coisas tendem a melhorar.

Ocorre que você pode ir por vários caminhos. A doença consiste em acreditar e viver como se o caminho fosse único. Ao contrário, são caminhos…

Cada um produz ou inventa o mundo que deseja habitar. No caso da cultura do brincar e de suas linhas de errância, importa acessar as potências do olhar-criança sobre o mundo.

Tenho visto que os artistas cênicos que se voltam para a Arte Educação muitas vezes aprendem, nos cursos de licenciatura principalmente, que é preciso estudar as etapas de desenvolvimento do ser humano, a fim de validar os exercícios teatrais. Aqui, a tese da aplicação: você tem um saber prévio sobre a cena que deve ser digerido por um grupo humano específico, sob sua coordenação ou liderança. Você estuda o desenvolvimento humano para ter um chão. A gente precisa de um chão: o lugar onde piso com os pés.

Eu já estou, sempre, num chão. De algum modo, já estou numa situação. O segredo consiste em tirar meu chão… Ou fazê-lo cantar. E entrar em conexão com outros cantos. Deixar-se modificar. Abandonar o território. Fazer-se nômade.

Outro jeito de acessar a criação em contextos de ensino ou em grupos humanos não voltados necessariamente para a profissionalização: o de encenador Robert Wilson nos anos 60 e 70. Ele tomava autistas e deficientes auditivos como instauradores de um novo plano da encenação. A questão não era, como tem se apresentado a muitos daqueles que se voltam para a educação inclusiva em arte, por exemplo, estudar meios de levá-los à arte – a um saber prévio. Seu caminho consistiu, ao contrário, em mostrar que já havia arte ali, no movimento daquele autista. A cena se modifica, o chão foge.

Trata-se, desse modo, de fazer que o plano da arte varie, defase, seja atravessado e saia à frente com outras potências, a partir da entrada de expressões humanas não afeitas ao universo da obra de arte entendida como obra acabada (coisa de algumas poucas centenas de anos).

Porém, eu não estaria gerando outra exclusão ao dizer que se trata de uma doença, o caminho único que tem vigorado no Teatro Educação? Justamente, se o que não mata engorda, a questão não está presa à estética do teatro dramático, mas à normatividade que tem imperado na abordagem do tema. A arte não surge como regra e norma, mas como um meio de dar sentido à vida. Que seja uma regra: ela vale enquanto instaura o chão que a sustenta! O teatro dramático, por exemplo, é uma sinfonia-máquina. É um desejo. Exclui do seu plano tudo o que é ruído. Mas, justamente, outros caminhos incluem os ruídos – as linhas de errância da criança são alguns deles.

As crianças e suas linhas de errância proporcionam outro plano. Em vez de procurar encaixar um mundo prévio nos alunos e alunas, você entra num plano de ciência nômade: seguir os traços de expressão que já estão acontecendo. E isso, é outra coisa.

Experimente!


OUTRAS POSTAGENS SOBRE O TEMA:

O Teatro pós-dramático e a educação
O Brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação
Teatro, educação & cultura do brincar

Imagem: Kandinsky – Composição VIII, 1923

Teatro pós-dramático e Educação

Uma das questões apresentadas no outro blog sobre criação cênico-corpórea, estética e micro-políticas são exercícios de ressonância com as análises de Hans-Thies Lehmannn a respeito do teatro pós-dramático. Entretanto, não havia, ainda, encontrado quem se dispusesse a trabalhar o tema na perspectiva da Arte-Educação. A grande maioria dos estudos de Teatro Educação, especificamente, estão voltados ao aspecto dramático, à construção de personagens ou de narrativas racionalmente discursivas.

André Mendes, com sua tese de doutorado O teatro pós-dramático na escola, vem potencializar esse campo de pesquisa e criação. Trata-se de um estudo que conribui para as práticas de de arte-educadores, artistas cênicos e interessados no campo das fronteiras e intermídias. Lembro-me, nesse caso, do pioneirismo de Ione Medeiros em Belo Horizonte, fundadora do Oficcina Multimédia, grupo que vem há mais de 20 anos criando nesse campo. Ione militou como Arte-Educadora e realizou diversos projetos nos Festivais de Inverno da UFMG que incorporavam uma estética cênica hibrida e provocadora. Para não falar, também, numa de suas parcerias, a artista Manoela Rebouças, que produz intervenções de Teatro Plástico nas escolas.

Na sua tese, André apropria-se, principalmente, dos pensamentos de Lyotard, Foucault e De Certeau, perpassando o happening, as intervenções cênicas, as criações híbridas, apontando para um teatro pós-dramático. Sua análise aborda as questões da educação e busca abrir brechas para a emergência de uma corporeidade não institucionalizada.

Muitos alunos e alunas de artes cênicas, atores e bailarinos, que estão em processos de criação tão singulares que não se enquadram totalmente na perspectiva do teatro dramático, quando solicitados a contribuir para a Educação, acabam por caminhar pelas já trilhas já reconhecidas. Não que um processo criativo seja melhor que o outro, mas sim que fazem emergir mundos diversos. Encontrar uma tese de doutorado que aborda tais questões alimenta a vontade de continuar a dialogar com os espaços institucionais da educação formal, abrindo novos possíveis para que as corporeidades de crianças e adolescentes possam usufruir das potências criadoras apontadas pelo pós-dramático.

Uma perspectiva pós-dramática para o teatro não resulta em algo que seja melhor ou que supere, em termos de paradigmas, o mundo inventado pelo teatro dramático. São, justamente, máquinas diversas: inventam, cada uma, sua própria coesão de sentido. O teatro interpretativo, baseado no discurso oratório dos atores, tendo o texto literário (mesmo que criado somente na encenação) como fator predominante, incluindo a conexão direta entre personagem e lugar, tem o seu lugar e constitui uma arte que podemos admirar a qualquer tempo. No entanto, quando se adentra nos espaços de uma arte mais instável, cujo estatuto configurativo implica interferências e ruídos, atravessamentos de sentido, flutuações de significado, outras experiências acontecem.

Uma delas diz respeito à entrada em cena de corpos desabilitados para a arte, expostos na sua concretude, abrindo espaços antes inconcebíveis para uma arte que se pensa completa e acabada. Um texto dramático pede que os atores dominem a técnica interpretativa, a fim de que possam as fendas do mundo. Num teatro pós-dramático, as fendas são as próprias corporeidades, expostas como estão, numa intromissão do real no plano da ficção.

Nesse sentido, um teatro pós-dramático é inclusivo: um corpo não habilitado para a cena, como a dança contemporânea não cessa de defender, pode ser um corpo expressivo, configurador de uma experiência poética. O teatro mais radical, como inaugurado por Robert Wilson nos anos 60, tem sido justamente o mais inclusivo: ele trouxe para a criação, em primeiro plano, autistas e deficientes auditivos. As conexões entre Educação e Teatro são, no mínimo, múltiplas e comportam singularidades.

A tese de André Mendes, nessa perspectiva, encoraja aqueles que desejam explorar outros caminhos para a criação cênica, em termos de Arte-Educação.

Para saber mais:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.
GAMA, Ronaldo Nogueira. As novas tecnologias e o ator pós-dramático. Revista Polêmica Imagem n. 19,UERJ.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de Arte Total para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva.1986.
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 2005.
SANDFORD, Mariellen R. (]Edited). Happenings and Other Acts. L
ondon and New York.Routledge. 1994
ROJO, Sara. La Performance art en America Latina. In, CARRERA, André… [et al] org. Mediações Performáticas Latino-Americanas II. BH: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

Territórios e Fronteiras da Cena. Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e humanidades. ECA-USP/Abrace.

Referências:

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda – Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.