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Relato de um jogo dramático

Imagem: @Doug88888

Aqui, a descrição de um jogo dramático com crianças do 1 ano do Ensino Fundamental. A ação ocorreu provavelmente entre o final dos anos de 1970  início dos anos  80, na Escola Balão Vermelho. Resolvi manter a descrição na íntegra, como eu havia redigido na época. Junto, o relato da professora da turma, que é muito bacana. Mais do que nostalgia, vejo naquele momento princípios muito interessantes. Chamo a ateção também para as leituras que fizemos do jogo, na época. Eu mais interessado na dinâmica, no processo e no ritual. A professora, em compreender e situar o conflito temático estabelecido pelas crianças. Foi uma bela parceria: crianças, professora da turma e professor de arte.

Fico feliz de rever esse velho material. Hoje, ainda, ele é mais do nunca muito novo. Pois estabelece não um “teatrinho”, mas a experiência ritualizada, negociada e ao mesmo tempo vivida. As crianças estão jogando, atuando, resolvendo, percebendo e imaginando. Não estão se comportando num palco para um platéia. E não estão ensaiando e tampouco decorando falas.  

Eu trabalhava com dois procedimentos: a ação não-diretiva (partia do que estava acontecendo no momento, quando as crianças se expressavam ou se apropriavam dos tempos-espaços,  sendo que eu buscava captar algo disso e, dali começar a criação) e ação diretiva (eu trazia algo para o grupo, fazia uma proposta).  Tudo começa, então, com uma criança que senta ao meu lado e começa uma conversa numa língua imaginária. Então, surgiu ali um foco, um interesse. Que eu procurei ampliar para o grupo todo.

O menino interagiu comigo através de uma expressão verbal: uga-uga-uga. Como nós já havíamos brincado com jogos e brincadeiras de bablação (em que se fala uma língua inexistente) eu continuei o diálogo inventando uma lingua diferente também. Aos poucos fui observando que ele não brincava  tanto deste jogo, mas sim esboçava uma espécie de caricatura  de homem das cavernas: os gestos, o tom de voz, o modo como se comportava, etc.  Algumas crianças foram se reunindo em torno de nós. Surgiram uma série de desencadeamentos espontâneos. Aos poucos já tínhamos uma divisão: de um lado os “uga-uga” e do outro os “humanos”.

A estrutura da brincadeira era muito idêntica ao do jogo-de-pegador. Observamos então, como uma proposta simbólica, ao se organizar livremente, se baseia numa estrutura de um jogo-de-regras. Os uga-uga aprisionavam os humanos e estes tentavam fugir. Chegando ao fim da sessão, combinamos continuar outro dia. Então, tratamos de conhecer melhor a relação uga-uga/humanos e dramatiza-la. A atividade foi tão excitante que as crianças lancharam dentro da própria brincadeira e tudo (discussão, construção do cenário e dramatização) durou mais de duas horas. Anexo, aqui, o relato da professora da turma, nas suas próprias palavras. Uma pessoa muito dedicada e concentrada, que acolhia minhas aulas  com muito carinho. E que participava ativamente, propondo, discutindo com os meninos, levando o jogo para a sala de aula e trazendo coisas de lá também.

Relato de Carolina:

Garrocho retoma com as crianças a estória da sessão passada: o uga-uga e os humanos. As crianças falam: Uga-uga era um macaco que tinha um bastão. Homem da pré-história é um homem meio macaco.

– Uga-uga é peludo e humano não.

Como os uga-uga (pré-história) se encontraram com os humanos (atuais)? pergunta Garrocho.

– Os uga-uga caíram num tufão e vieram para essa época- responde uma criança.

– Não, os humanos foram para a pré-história, atina outro.

As crianças discutem as duas propostas e ganha a primeira: os uga-uga vieram para a nossa época.

Está bem, os uga-uga chegaram aqui, e então? – continua Garrocho.

– Eles estranharam tudo e começaram a destruir.

Pergunto àquela criança: o que é “estranhar.

– Estranhar é não conhecer.

– Os uga-uga estranharam tudo, tiveram mêdo e começaram a destruir. Os humanos também não reconheceram os uga-uga e começaram a brigar.

Os uga-uga falavam todas as línguas.  E então os uga-uga propuseram aos humanos dividir metade da terra para eles e a outra metade para os humanos. Os uga-uga construiriam e dariam aos humanos em troca de material para construir casas, roupas e sapatos. O pelo também começaria a cair eles iriam ganhando pele de humanos e se transformariam em humanos. Fim da estória.

Garrocho apresenta o material para a construção do cenário. Papel em rolo, pano, cola, grampeador e giz de cera. A turma foi dividida em duas: turma dos uga-uga e turma dos humanos para a construção do cenário. 11 reclama o papel de rei dos uga-gua por ter sido ele “quem inventou o uga-uga”. A turma discorda.’  Os uga-uga colocam duas grades paralelas e colocam panos em cima : é a caverna e o túnel. Os humanos fazem um cercado com as grades. Desenham as casas no papel grande. Os uga-uga também desenham a cidade. Como o pano da caverna começou a cair eles o substituem por barbante.

Começa a dramatização. Garrocho narra:

“O vento sopra forte (as crianças sopram) e os uga-uga chegam à terra dos humanos e estranham tudo. As crianças fazem caras feias e conversam em sua língua. Depois de um ‘ tempo elas destroem tudo.  

“Os uga-uga conversam com os humanos, dividem a terra e pedem material para construir suas casas.”

Neste momento os humanos nos procuram para reclamar que deram material e não ganharam nada em troca. Garrocho: “Os humanos estão reclamando que deram material e não ganharam nada.

Os uga-uga, então, dão as armas combinadas.

“Os uga-uga foram ficando velhos, seus pelos foram caindo e eles ficaram iguais aos humanos.”

Os uga-uga começam a anda como humanos, a falar e a interagir com eles. Brincam, correm juntos, uns visitam aos outros. Um menino pede um remédio para a doença do “pelo arrepiado”. As crianças começam a se dispersar e a dramatização acaba.

Foi muito interessante esta brincadeira. As crianças tiveram uma experiência completa com o Garrocho, ou seja, viveram com ele não apenas a dramatização, mas desde a elaboração da estória (com discussão dos pontos discordantes) em rodinha, passando pela construção do cenário, até dramatização. A estória partiu de uma ideia fantasiada de A. que foi percebida e incentivada pelo Garrocho. As crianças adoraram brincar de “homem pré-histórico”, sem no entanto abrirem mão de sua condição de civilizados.

Foi interessante observar como as crianças percebem o elemento primitivo ligado à agressão, à destruição, ao animal. É um elemento muito forte, mas fora de época, ou melhor, permitido em épocas remotas (“homem de antigamente”), mas altamente atrativo para elas, ao mesmo tempo que ameaçador. Algumas crianças, por exemplo, recusaram-se terminantemente ao papel de uga0 uga, como se fosse algo ruim, mas a perseguição e a luta foram curtidas e vividas com estralhadaço.

Agora, para mim, o mais importante, foi como eles resolveram o problema da agressão, cortando o círculo agredir/ser agredido – aos poucos o elemento civilizador é incorporado pelo agressor (os uga-uga falam diversas línguas, propõem divisão de terras e troca de instrumentos), a agressão é trocada por organização, construção (materiais), até que o uga-uga fique completamente civilizado. Para isto eles adoeceram (a doença do pelo arrepiado), perderam sua força-agressão,  perderam sua força-agressão representada pela queda dos pelos (o pelo é representante da condição animal, da condição agressiva) e se transformaram em humanos. Foi como se eles tivessem adoecido com o vírus civilizatório, morto em parte e ressuscitado como um novo ser. Simplesmente impressionante.”

Referencias:

– Link para o autor da imagem: @doug88888

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

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