Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola

Quando comecei a brincar com crianças – e era precisamente isso – eu não sabia nada sobre Arte-Educação ou Teatro-Educação. Apenas me deixava levar pelas linhas de errância do brincar exploratório e sensível das crianças.

Estava trabalhando na escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte, e era o ano de 1974. O fato de fazer teatro – e eu começava como ator – não me trazia nenhuma vontade de impor qualquer codificação às crianças. Brincava no recreio, em meio a areia, terra, jabuticabeira, goiabeira e um zumzum maravilhosos de crianças. Entretanto, somente anos depois, pude perceber que aquele plano, o do brincar, carregava as potências desterritorializantes que hoje busco para a criação cênica.

Com as crianças de 06 anos que deixavam a educação infantil, fiz uma apresentação que tornou-se exemplar para mim, hoje. Explico: de um tipo de ritualização cênica que não envolve a distinção tradicional entre palco e platéia, como é comum nas codificações dos jogos teatrais. E que fogia, além disso, às exigências tão comuns de exibirem crianças em ocasiões festivas. Os pais e mâes deram os braços e fizemos um longo corredor.. As crianças, então, engatinhavam por cima dos braços cruzados, atravessando uma ponte de corpos. Depois, brincávamos de esconder e as crianças faziam sons para que os pais as encontrassem.

A criação partiu de mim para as crianças. E não vejo problema algum nisso. Naquele momento, de tanto beber na fonte do brincar, encontrava-me livre para fazer, eu também, um convite em direção ao brincar, envolvendo também os adultos. Organizava o ritual, a festa, o encontro. Mas na direção das crianças – o que elas me forneciam quando brincávamos juntos.

Ali germinava um pensamento que, muitas vezes, deixei perder, em meio a tanta psicopedagogia que me abafou os sentidos durante anos. Um germem poderoso: a teatralização como ritual parcipativo. Acrescento nisso a possibilidade de o educador se envolver com o brincar. Não para enfeitar, arrumar, exibir crianças etc. Mas sim para se perder por uns momentos também. Consciente disso. Buscando a experimentação. No caso: um modo dos corpos se encontrarem num espaço e num tempo que não seja do auditório, da exibição, da cena codificada, da sociabilidade convencional. Fizemos uma ponte de corpos.

Obviamente, esse é apenas um dos caminhos que se abrem. Eu devolvia às crianças, pelo meu olhar, os traços de brincadeiras cênicas que elas viviam no cotidiano. Curiosamente, minhas aulas não eram nomeadas de teatro, mas de “aventura perigosa”. Hoje, consigo perceber conexões e ressonâncias com o campo da performance art. Veja bem: não estou dizendo que uma coisa é a outra. Antes disso: elas se tocam…

O teatro pós-dramático, a performance art, os hibridismos em arte, tudo isso dialoga com as linhas de errância do brincar. A Arte-Educação pode aprender muito com isso. No mínimo: os caminhos são múltiplos e diversos.

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun

Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai…

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício – é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que “tomam conta” dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.

A roda que gira por si só

Paul Klee, Angel full of Hope, 1939

Friedrich Nietszche, pela boca de Zaratustra, menciona três transformações do espírito: “como o espírito se converte em camelo, e de camelo em leão, e de leão, por fim, em criança”[1].
O espírito depara-se inicialmente com o seu senso de dever, com a pergunta pelo que deve carregar. Porém, uma segunda transformação se impõe: é preciso transformar-se em leão, “conquistar sua liberdade como se conquista uma presa”. Diante do “tu deves” o leão diz: “eu quero”. Não basta, portanto, ao ser humano admitir a existência dos valores, reconhecê-los – é preciso criar novos valores.
Mas o leão não consegue criar novos valores. Ele conquista a liberdade, enfrentando o “tu deves”. Com seu poder e sua força o leão é capaz de estabelecer condições para a criação de novos valores, superando a etapa do camelo que se contenta em carregar o mundo nas suas costas e garantindo a nova transformação do espírito, que é a criança. Entretanto, pergunta Zaratustra, “que é capaz a criança que nem sequer o leão pode fazê-lo? Porque haveria o jovem leão de se transformar em criança?” Não seria suficiente a força e o ímpeto da fera que conquista sua liberdade? Zaratustra, nos diz que a criança é “o esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que move por si mesma, um primeiro movimento, um santo dizer sim”. Este é, para Nietzsche, o que é próprio do jogo de criar: viver no perpétuo estado automotor. Somente transformando-se em criança poderá o leão, que já conquistou sua liberdade, dominar o jogo de criar – esta roda que se move por si mesma.

É na experiência do brincar que podemos entender melhor uma atividade com motivação intrínseca – o que faz uma roda girar por si mesma. No modo como a criança apropria-se da experiência através do ato de brincar encontramos fortes intuições desse estado: o do ser que brinca.

[1] Nietzsche, F. – Assim Falava Zaratustra – Alianza Editorial – Madrid, 1972.