Teatro pós-dramático e educação II

As potências do teatro pós-dramático em relação à educação (ou melhor, ao Teatro-Educação), tomam o foco novamente. No blog em que deflagro questões sobre estética contemporânea, nomadismos e criação cênico-corpórea, fiz uma postagem intitulada Do teatro pós-dramático e das dramaturgias híbridas, no qual cito o número especial da revista Humanidades, da Editora da UnB, dedicado a essa vertente da criação cênica. Um dos artigos é o de Maria Lúcia Pupo, que discute justamente as perspectivas do teatro pós-dramático, na análise de Lehmann, em relação à educação.

No artigo, Sinais de Teatro-Escola, Maria Lúcia Pupo pergunta:”haveria procedimentos específicos que chegassem a configurar uma pedagogia para a cena pós-dramática?” A autora faz essa pergunta no recorte de uma “ação educativa proporcionada pelo exercício e pela função da cena por parte de pessoas de qualquer idade qu evivam processos de aprendizagem em teatro, sem, no entanto, possuir qualquer vínculo profissional com a arte”.

Maria Lúcia apresenta as principais características do teatro pós-dramático, entre elas, a de ser um teatro que realiza a transgressão dos gêneros, a negação da fábula, a presentificicação, a recusa da síntese em troca da busca de uma “densidade em momentos intensos”. Pupo ainda fala da não-hierarquia das imagens, da presença no lugar da representação, de uma corporalidade autosuficiente, entre outros aspectos. Para a autora, há certos exercícios teatrais que se caracterizariam antes por não definirem situações dramáticas ou configurações de personagens. E que podem ser acionados, acrescento, como linguagem cênica.

Trata-se de um traço pós-dramático a inserção do real na ficção, de modo que os eixos espaço-temporais, em sua concretude e fisicalidade (ou materialidade cênica) possam ser a própria textualidade cênica. Ou seja, a própria linguagem da cena. Assim, o que antes poderia ser tomado, no teatro dramático, como treinamento e processo que não deveria ir para a cena, sendo abandonado antes, passa a fazer parte do resultado.

Não posso deixar de citar a experiência pioneira do projeto Laboratório: Textualidades cênicas contemporâneas, projeto da Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura, com curadoria de Fernando Mencarrelli e Nina Caetano, que difunde e trabalha na formação como criação para uma cena pós-dramática. O projeto traz especialistas que discutem essa criação contemporânea, proporcionando aos núcleos de criação inscritos, oficinas. Na versão de 2007, André Semenza e Fernanda Lippi do Zikzira Physical Theater, com sede em Londres e em Belo Horizonte, dialogam com os criadores do projeto, não no sentido de proporcionar uma formação, mas de, juntos, fazer um mapeamento dessa criação.

Por fim, acrescento outra linha: a cultura do brincar. Na direção proporcionada pelo de Maria Lúcia Pupo, tomo por tarefa a investigação dos procedimentos técnicos de criação inspirados nas linhas de errância do brincar. Entendo que a brincadeira exploratória e sensível da criança fornece elementos que podem ser esquisados pelos artistas cênicos interessados no pós-dramático. Modos esses antevistos por Maria Lúcia Pupo, quando ela aponta para as potências de uma pedagogia teatral pós-dramática: aquela em que se dá a “instauração de uma desordem”.

Referências:

PUPO, Maria Lúcia. Sinais de Teatro-Escola. In
Humanidades, edição especial. Brasília: Editora UnB, novembro de 2006.
LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.

Postagens:
Teatro Pós-dramático e educação
O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda – Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.

Teatro pós-dramático e Educação

Uma das questões apresentadas no outro blog sobre criação cênico-corpórea, estética e micro-políticas são exercícios de ressonância com as análises de Hans-Thies Lehmannn a respeito do teatro pós-dramático. Entretanto, não havia, ainda, encontrado quem se dispusesse a trabalhar o tema na perspectiva da Arte-Educação. A grande maioria dos estudos de Teatro Educação, especificamente, estão voltados ao aspecto dramático, à construção de personagens ou de narrativas racionalmente discursivas.

André Mendes, com sua tese de doutorado O teatro pós-dramático na escola, vem potencializar esse campo de pesquisa e criação. Trata-se de um estudo que conribui para as práticas de de arte-educadores, artistas cênicos e interessados no campo das fronteiras e intermídias. Lembro-me, nesse caso, do pioneirismo de Ione Medeiros em Belo Horizonte, fundadora do Oficcina Multimédia, grupo que vem há mais de 20 anos criando nesse campo. Ione militou como Arte-Educadora e realizou diversos projetos nos Festivais de Inverno da UFMG que incorporavam uma estética cênica hibrida e provocadora. Para não falar, também, numa de suas parcerias, a artista Manoela Rebouças, que produz intervenções de Teatro Plástico nas escolas.

Na sua tese, André apropria-se, principalmente, dos pensamentos de Lyotard, Foucault e De Certeau, perpassando o happening, as intervenções cênicas, as criações híbridas, apontando para um teatro pós-dramático. Sua análise aborda as questões da educação e busca abrir brechas para a emergência de uma corporeidade não institucionalizada.

Muitos alunos e alunas de artes cênicas, atores e bailarinos, que estão em processos de criação tão singulares que não se enquadram totalmente na perspectiva do teatro dramático, quando solicitados a contribuir para a Educação, acabam por caminhar pelas já trilhas já reconhecidas. Não que um processo criativo seja melhor que o outro, mas sim que fazem emergir mundos diversos. Encontrar uma tese de doutorado que aborda tais questões alimenta a vontade de continuar a dialogar com os espaços institucionais da educação formal, abrindo novos possíveis para que as corporeidades de crianças e adolescentes possam usufruir das potências criadoras apontadas pelo pós-dramático.

Uma perspectiva pós-dramática para o teatro não resulta em algo que seja melhor ou que supere, em termos de paradigmas, o mundo inventado pelo teatro dramático. São, justamente, máquinas diversas: inventam, cada uma, sua própria coesão de sentido. O teatro interpretativo, baseado no discurso oratório dos atores, tendo o texto literário (mesmo que criado somente na encenação) como fator predominante, incluindo a conexão direta entre personagem e lugar, tem o seu lugar e constitui uma arte que podemos admirar a qualquer tempo. No entanto, quando se adentra nos espaços de uma arte mais instável, cujo estatuto configurativo implica interferências e ruídos, atravessamentos de sentido, flutuações de significado, outras experiências acontecem.

Uma delas diz respeito à entrada em cena de corpos desabilitados para a arte, expostos na sua concretude, abrindo espaços antes inconcebíveis para uma arte que se pensa completa e acabada. Um texto dramático pede que os atores dominem a técnica interpretativa, a fim de que possam as fendas do mundo. Num teatro pós-dramático, as fendas são as próprias corporeidades, expostas como estão, numa intromissão do real no plano da ficção.

Nesse sentido, um teatro pós-dramático é inclusivo: um corpo não habilitado para a cena, como a dança contemporânea não cessa de defender, pode ser um corpo expressivo, configurador de uma experiência poética. O teatro mais radical, como inaugurado por Robert Wilson nos anos 60, tem sido justamente o mais inclusivo: ele trouxe para a criação, em primeiro plano, autistas e deficientes auditivos. As conexões entre Educação e Teatro são, no mínimo, múltiplas e comportam singularidades.

A tese de André Mendes, nessa perspectiva, encoraja aqueles que desejam explorar outros caminhos para a criação cênica, em termos de Arte-Educação.

Para saber mais:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.
GAMA, Ronaldo Nogueira. As novas tecnologias e o ator pós-dramático. Revista Polêmica Imagem n. 19,UERJ.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de Arte Total para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva.1986.
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 2005.
SANDFORD, Mariellen R. (]Edited). Happenings and Other Acts. L
ondon and New York.Routledge. 1994
ROJO, Sara. La Performance art en America Latina. In, CARRERA, André… [et al] org. Mediações Performáticas Latino-Americanas II. BH: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

Territórios e Fronteiras da Cena. Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e humanidades. ECA-USP/Abrace.

Referências:

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda – Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.