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O bullying professor-aluno e a transferência de autoridade

Crise na transferência de autoridade?

Ouço educadores reclamarem da ausência de autoridade na educação. Há uma percepção reinante de que podem ser processados juridicamente por qualquer coisa, sem falar nas agressões praticadas por alunos. Volta e meia recebo mensagens eletrônicas com prognósticos sombrios sobre a situação atual. E o que me preocupa é que muitas dessas análises têm se mostrado extremamente conservadoras: ausência de valores, inversão das relações de poder etc. Os pais são caracterizados como incapazes de realizarem a transferência de autoridade para a instituição escolar. Noutra hipótese, talvez não sejam eles mesmos exemplos de autoridade. Vivemos, segundo essa opinião,  numa época de total anomia.

O raciocínio me parece devedor de uma polaridade: do poder do professor ao poder do aluno. Algo foi retirado do primeiro e repassado ao segundo, daí os males de nossa época. O que me parece uma grande simplificação. Pois, como é entendido que a polarização tende para este último, tudo o mais se perderia: o rigor do conhecimento, as normas e tradições, o respeito, a consideração pelos superiores etc.

Por essas vias, acabamos por ignorar os agenciamentos de poder, da qual não podem ser separadas nossas práticas existenciais e pedagógicas. E de sobra, passa-se por cima das mudanças  sociais que lhe são correspondentes. Além disso, camufla-se o bullying professor-aluno, assim como o que ocorre na relação instituição-aluno, que não podem ser ignorados, mesmo quando não se mostram por meio de agressões físicas e morais. Há uma prática, camuflada ou direta, de bullying professor-aluno. Esse me parece ser o traço que poderíamos percorrer a fim de examinar o plano sobre o qual se dá a relação educador-educando, assim como educador-instituição e educando-instituição. Ou seja, é necessário uma crítica do que instituímos e do que somos instituídos nas nossas práticas pedagógicas. A queixa sobre a perda do sentido de autoridade  pode ser um sintoma de que as coisas não vão bem, mas não podemos simplesmente aderir a um prognóstico conservador, ocultando a violência que perpassa, muitas vezes sutilmente, as relações humanas nos espaços de formação.

Castigo físico e humilhação nos anos 60

Talvez seja bom reavivar uma história recente: a do castigo físico e da humilhação perpetrados por muitas instituições e educadores, uma constante na minha geração, nos anos 60. Nessa época, já no final da década, com 12 anos, estudava num colégio tradicional e católico, em Belo Horizonte. Havia um consenso, na época, de que o castigo físico educava. A repreensão pública e a desqualificação do aluno também não eram vistas como algo errado. Tornavam-se exemplares. Então, professores podiam bater e humilhar. Acrescente-se a esse quadro o fato de não quase não haver diálogo entre pais e filhos. Obedecia-se e ponto final. A infância era uma região que um adulto não se interessava em compreender. O adulto já estava, ou deveria estar, integrado ao universo da reprodução social – e nós éramos a ponta que, dia após dia, deveria ser arrastada para a produtividade. Enquanto isso, éramos como bárbaros e selvagens que deveriam permanecer nesse estado nos horários livres. Não por que os adultos achassem nisso algo de positivo. Mas simplesmente porque, do lado contrário da educação e do trabalho, existia uma natureza refratária que deveria ser, paulatinamente, dobrada. Essa mesma natureza que os adultos sabiam existir neles, mas que encontrava-se domesticada e submetida. E a escola era o lugar onde, para lembrar Foucault, o vigiar e o punir se davam de modo exemplar.

Não havia uma cultura da escuta, difundida pela psicanálise pela revolução cultural dos anos 60 e 70. Os padres lidavam com uma massa enorme de alunos, do sexo masculino exclusivamente, que deveria ser conduzida com rigor. Para dar apenas uma ideia, uma sala de aula tinha até 60 alunos! E apesar dos controles rígidos e da moral ríspida e conservadora, o bullying aluno-aluno, professor-aluno e instituição-aluno era predominante. Aqueles que apresentavam alguma fragilidade, física e ou emocional, eram sistematicamente perseguidos, humilhados, estigmatizados. E nisso muitos alunos e professores estavam juntos. A violência estava no ar: contra os homossexuais, no desprezo pela mulher livre e independente, em relação a tudo o que era diferente da norma. Sem falar na ditadura militar e seu espectro persecutório. Não vale a pena descrever os rituais de castigo e agressão, de humilhação e assédio que vigoravam nos anos 60.

Mas o que impressiona, contudo, é o bullying (assédio, intimidação, agressão física e moral) – praticado por aqueles que deveriam ser nossos educadores. E nós não poderíamos, naqueles anos que antecederam a revolta dos 70, opor qualquer resistência. E veio a revolução jovem. Cabelos longos, comportamentos, recusa dos rituais estúpidos, engajamento político etc. O castigo físico sumiu. Houve a troca da guarda: os velhos professores se aposentaram ou morreram. No entanto, se o sistema gira, ele continua cumprindo seus rituais, apesar das constantes denúncias sobre bullying.

Um bullying mais sutil?

Os pensadores Deleuze e Guattari mostram que uma sociedade não é meramente um lugar de troca e de circulação, mas sim um “socius de inscrição, onde o essencial é marcar e ser marcado”. Com isso quero dizer que deveríamos perceber o bullying sobre outro plano, que não o de suas atualizações concretas, visíveis. É preciso ver como o tecido das relações institucionais está permeado, nos processos de subjetivação, de rituais e práticas em que marcamos e somos marcados.

Podemos notar que o sistema de transferência de autoridade – dos pais para as instituições de ensino –  tem passado por modificações. E o que me parece ser mais importante observar é que o regime disciplinar (para pensar com Focault), ruiu como formador de um horizonte de sentido. Não que deixe de existir totalmente. Mas sim que ele não consegue conter uma nova realidade: estamos nos transformando em consumidores sedentos! E muito da “indústria” do direito, como alguns vêm reiteradamente denunciando, não deixa de ser uma expressão e uma validação desse plano. Os processos de subjetivação, nos quais a escola se insere num longo trajeto e num grande tempo tomado da vida, não podem deixar de ser vistos sob essa ótica: a do conhecimento como mercadoria, a do aluno como consumidor de um serviço. Portanto, queixar-se, como fazem as análises conservadoras, de um tempo “dourado” em que havia autoridade, apenas esconde o jogo que atualmente jogamos.

Algumas instituições procuram associar consumo – a mercadoria conhecimento – com rigor e cobrança de resultados. Testes de aquisição de conhecimento são praticados desde a educação infantil. E os professores são avaliados, por sua vez, a partir do sucesso ou não de seus alunos. Tudo posto, a reprodução social avalia metas duras, mas centradas exclusivamente na aquisição da informação e de certas competências cognitivas. E não haverá tempo para os corpos, a não ser que seja da ordem do controle ou do consumo. Ladeados pela indústria da advocacia, projetam um futuro “limpo”, sem excessos morais (pelo contrário),  definidos por aquisições objetivas. Enquanto isso, nas escolas públicas…

O “socius de inscrição”, de que falam Deleuze e Guattari, modifica-se para uma realidade que não mais se encaixa no regime das sociedades disciplinares. O ato de marcar e ser marcado também sofre mutações. Posso dizer que há um bullying mais sutil sendo perpetrado em muitas das relações pedagógicas, principalmente quando não se realiza uma prática de análise institucional.  Ocorre nos jogos linguísticos, nas relações afetivas e nos mecanismos de inclusão e exclusão. No esforço que os pais fazem para manter seus filhos aceitos num horizonte formativo. Sim, os corpos seguem “livres” para consumir e existir no cansaço ou na excitação, no tédio ou na repetição burocrática, nos festivais e competições. Recebem os nutrientes necessários. Mas a inteligência e os afetos estarão regidos por códigos abstratos, cuja única regra é a do  “dentro” ou “fora”, num futuro qualquer no mundo das mercadorias.

Por isso, não se trata mais de castigo físico, com raras exceções. Algo de mais sombrio, contudo, se avizinha: a submissão da vontade livre.

 

Mais referências –

Agenciamento. Luiz Fuganti.

Pos-scriptum sobre sociedade de controle. Gilles Deleuze

Educação e violência. Luiz C. Garrocho

– Imagem: objetos de A Classe Morta, de Tadeuzs Kantor

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

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