Aguardava na entrada da sala de práticas de teatro uma turma de crianças que tinham entre 9 e 10 anos de idade. Meados dos anos de 1980, em uma escola formal de ensino médio. Noto que uma menina chega com uma boneca na mão. Aquilo se tornou emblemático para mim, para o resto de minha vida: essa criança não tem que se desfazer desse objeto que forma um mundo para ela. Cada momento em que me deparo, inclusive com atores e atrizes, é sempre isso: o que vem – o que emerge no momento – deve fazer, de algum modo, parte do processo criativo.
Categoria: Geral
“As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Nelas estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.”
Walter Benjamin, in Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Duas Cidades/Editora, 2002

Tarde fria do mês de julho, com um céu azul e sem nuvens. Vejo três crianças brancas, descendo a rua de um bairro zona sul, acompanhadas de uma senhora. As idades variam entre os 07 e os 10 anos mais ou menos. Estamos no período de recesso escolar – antigamente chamado de férias porque era o mês inteiro e não somente esses quinze dias encolhidos. O que eu constato? Muito provavelmente, esse grupo humano seguirá para algum algum shopping center. Ou, no melhor das hipóteses, para alguma pracinha cujos espaços voltados ao brincar já são tão delineados – pouca margem para a indeterminação. Talvez uma casa onde tenha quintal? Difícil isso acontecer hoje em dia.
Essas crianças não se deparam mais com o que chamamos de mundo de cultura da rua, que já foi o mundo de cultura da infância – que proliferava até final dos anos de 1960 e de modo mais rarefeito no início dos anos de 1970. Sim, um mundo das ruas, dos terrenos baldios, dos espaços ainda não totalmente determinados pelo uso planificado. Não existem mais terrenos baldios, e os que ainda resistem são cada vez mais raros e dispostos mais para as populações periféricas. Ali se instalavam os circos, surgiam os campos de futebol, se reuniam os meninos e as meninas para viver suas narrativas de corpo, ficção e jogos. Nas fases e faixas de transição, quando se instalavam as construções, os dutos e pavimentações, ainda assim esse era um mundo a ser habitado pelo brincar – até que logo se definia um uso que não cabia mais a infância e sua cultura lúdica.
A criança e o movimento
Novamente pude observar crianças brincando sozinhas, isto é, sem direcionamentos por parte de adultos. Estava no Centro de Cultura do Banco do Brasil de Belo Horizonte, fazendo uma refeição leve no início da noite, sentado em um dos bancos dispostos no amplo pátio interno do prédio histórico. Nele, duas meninas por volta de quatro a cinco anos, brincavam. Provavelmente pai e/ou mãe estavam ali, numa das mesas externas do café.
O que essa breve observação me trouxe? Ela me inseriu mais uma vez no motivo recorrente de minha caminhada nas artes da cena: a criança como inspiração – e não o contrário, querer ensinar teatro e/ou dança para crianças. Não que uma prática pedagógica não possa ocorrer nesse sentido, é que ela teria outras bases.
Na introdução de Ways of Walking: ethnography and practice on foot ( University of Aberdeen, UK ), os editores, Tim Ingold e Jo Lee Vergunst, contrastam os modos de aprendizagem das crianças ocidentais nas escolas e das crianças aborígenes. O livro se propõe a a uma abordagem antropológica transdicisplinar (entre disciplinas e temáticas) sobre os modos de caminhar, a percepção do ambiente, o pensamento, o corpo, a criatividade etc. Os autores nos convidam, por exemplo, a notar que um adulto sempre tem o olhar para longe do aqui-agora quando conduz uma criança pela mão, enquanto esta mantém o olhar mais baixo, mais flutuante, aberto às ocorrências do entorno.
Selecionei dois trechos da Introdução (numa tradução livre), quando os autores comparam práticas de condução das crianças por adultos, nas culturais ocidentais e aborígenes. Eles citam um dos artigos presentes no livro, em que a autora, Elizabeth Curtis, discute uma prática escolar em que as crianças vão, guiadas pelos educadores, estudar o patrimônio histórico da cidade. O modus operandi, que conhecemos tão bem por ser tão usual, é o de uma separação entre o pensamento e o caminhar. O primeiro se faz sedentário e o segundo se vê controlado e, por isso, linear.
“O mundo, o universo se lança em meu corpo de menino, e ele não tem nem histórias, nem personagens. A criança não faz nada além de descrever ou inscrever a velocidade e a flutuação de tudo que se passa em seu corpo sem forma. Os dramas, os acontecimentos e as sensações que perturbam os adultos não são mais, pra esta criança, do que o movimento perpétuo dos átomos constituindo a vida”.
Huniich Uno, in A gênese de um corpo desconhecido. Tradução de Christine Greiner, com a colaboração de Ernesto Filho e Fernanda Raquel. São Paulo: n-1 Edições, 2012.
Aqui, a descrição de um jogo dramático com crianças do 1 ano do Ensino Fundamental. A ação ocorreu provavelmente entre o final dos anos de 1970 início dos anos 80, na Escola Balão Vermelho. Resolvi manter a descrição na íntegra, como eu havia redigido na época. Junto, o relato da professora da turma, que é muito bacana. Mais do que nostalgia, vejo naquele momento princípios muito interessantes. Chamo a ateção também para as leituras que fizemos do jogo, na época. Eu mais interessado na dinâmica, no processo e no ritual. A professora, em compreender e situar o conflito temático estabelecido pelas crianças. Foi uma bela parceria: crianças, professora da turma e professor de arte.
Fico feliz de rever esse velho material. Hoje, ainda, ele é mais do nunca muito novo. Pois estabelece não um “teatrinho”, mas a experiência ritualizada, negociada e ao mesmo tempo vivida. As crianças estão jogando, atuando, resolvendo, percebendo e imaginando. Não estão se comportando num palco para um platéia. E não estão ensaiando e tampouco decorando falas.
Tive o privilégio de viver o teatro antes de conhecer o teatro. Como foi isso? Início dos anos 50, no nordeste de Minas, Teófilo Otoni. A televisão ainda não havia chegado lá. Mas já tinha ido ao cinema.
Então, isso já não era uma influência cultural? Sim, de qualquer jeito. Mas tal matéria fílmica era muito diferente dos comportamentos representados diante do outro. Era uma janela tremulante e mágica. Vinicius de Moraes falava que a imagem projetada é como aquela pequena chama no meio da escuridão: um fascínio ancestral.
E o teatro? Eu nunca havia visto. Então, eu brincava de quê? E como se pode dizer que toda criança pequena faz teatro sem conhecer teatro? Meu avô fez para mim uma espada de madeira pequena. Vivi o tempo da feitura, do imaginário forjado ali na minha frente. Uma duração. E tive brinquedos comprados também. Revólveres que me encantavam, um ao lado do outro. Sim, os cowboys, eu os vivia intensamente. E uma espingarda de pressão com uma rolha e um barbante na ponta. Mas nada disso era mais forte que outra coisa: o ato de brincar como poiesis. Pois o brincar antecede o brinquedo: é maior do que ele.
Gostei muito do livro de Ettore Bottini, Mãe da rua (São Paulo: Cosac Naify, 2007). Bom para ler junto com os filhos. Acho que funciona mais com meninos. As brincadeiras e o mundo de vida ali apresentados concernem a esse universo. Como diz o autor: “este é um livro para ex-meninos. Se as meninas quiserem, que escrevam o seu”. Acredito, porém, que ex-meninas interessadas na cultura lúdica das ruas vão se esbaldar e, talvez, um dia vão querer escrever o seu.
“Vai brincar na rua, moleque! – disse a mãe. E nós fomos. É claro que a frase foi pronunciada numa São Paulo já distante no tempo, quando a profissão das mães era declarada no recenseamento como ‘prendas domésticas’, quando as ruas comportavam com folga o número de automóveis e quando ainda não existia a neurose atual da violência urbana.”
Assim começa o livro de Ettore Bottini. É farto de imagens, descrições de brinquedos e brincadeiras praticadas por meninos naqueles tempos idos. Ele descreve, além disso, os territórios, as negociações entre os bandos e as pequenas armas. Uma delícia rever tudo isso.
E uma curiosidade: fiquei sabendo de um jogo, o Taco, que tem algumas semelhanças com um jogo muito comum nos anos 60 e 70, que era o Bente altas, licença para dois. Parece que o primeiro era encontrado em São Paulo e o último em Minas Gerais. Ao que tudo indica, ambos os jogos têm influência do Beisebol.
Por fim, são essas saudades de um mundo onde o conhecimento e a sociabilidade passavam antes pelo sensível e que, por isso mesmo, tanto se assemelhava à arte. Recomendo, muito.
Mais referências
– Bente altas. Mapa do brincar.
A ausência de contato físico continua a se impor entre pais e filhos. E assim vão surgindo seres menos afetivos, menos livres e sem desejo pelo movimento. Ou, então, desorientados nos seus espaços de ação. Tenho observado que muitos pais, ao adquirirem a cadeira para transportar bebês em veículos, aproveitam para levá-los também de um lado a outro nos passeios. Vi um bebê sendo levado assim, flutuando no espaço, olhando aquele imenso céu azul. Lembrei-me, logo, do planeta Wall-e, o desenho da Pixar-Disney, do robozinho que volta à estação espacial, onde estão todos os humanos, e os vê entregues a uma letargia e total falta de movimento.
A cadeirinha é uma exigência da lei, a fim de dar segurança aos bebês e crianças pequenas. Além disso, é prática. Porém, não podemos esquecer que o mais importante é o toque. Diferente disso é quando levamos a criança coladinha no corpo, com um suporte, numa longa caminhada ou passeio. Mas deixá-la, de início, sem contato corporal, é um grande equívoco.