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A menina que veio com sua boneca para a aula de teatro

Aguardava na entrada da sala de práticas de teatro uma turma de crianças que tinham entre 9 e 10 anos de idade. Meados dos anos de 1980, em uma escola formal de ensino médio. Noto que uma menina chega com uma boneca na mão. Aquilo se tornou emblemático para mim, para o resto de minha vida: essa criança não tem que se desfazer desse objeto que forma um mundo para ela. Cada momento em que me deparo, inclusive com atores e atrizes, é sempre isso: o que vem – o que emerge no momento – deve fazer, de algum modo, parte do processo criativo.

Se eu posso pensar o teatro como performatividade, não está dado de antemão o que pode e o que não pode entrar nesse jogo. Numa aula de balé clássico, por exemplo, a boneca ficará num cantinho. No teatro, ela pode e deve ser incorporada.

Sim, a partir daquele dia, em que a menina entrou com a boneca na sala de aula, fortaleceu em mim a ideia de que o teatro é um lugar onde o fazer pode se dar a partir do que o outro também traz. Mais do que isso, do que emerge no nosso campo de percepção.

Porém, isso nem sempre é simples assim. Pessoas adultas que desejam estudar teatro chegam, muitas vezes, com uma paisagem já previamente definida – que carregam consigo, ileso às mudanças e variações do que é vivo. Algumas esperam que suas contribuições entrem no jogo de modo inalterado – já trazem um mundo fechado. O que chega, nesse caso, não é o que vem, mas o que já está feito e não pode ser modificado.

Sobre isso lembro-me sempre de uma historinha do Zen Budismo em que o visitante veio fazer uma consulta ao monge e este o convida para tomar chá. Ao despejar o chá na xícara, o monge vai colocando até que começa a transbordar, e ele nem para por causa disso. O visitante então, meio que assustado, diz: está entornando tudo! O monge então responde: Assim veio você, cheio – não cabe mais nada!

Com a criança, algo diverso se dá. Os hábitos e condicionamentos não estão, ainda, tão formatos e endurecidos. Isso porque a criança é um ser que brinca. E todo brincar – se é um brincar – possui, em algum grau, linhas de errância e entra em processos de variação contínua. A criança experimenta.

O que começou a ocorrer, nas minhas aulas, cada vez mais, é que não se tratava simplesmente de utilizar o modo cotidiano ou atual daquela criança que trazia a tiracolo sua boneca, mas sim as potências do objeto e do ato lúdico.

Aos poucos, fui percebendo que também o significado já dado dos brinquedos “infantis” deve ser desconstruído para que uma experimentação pudesse ocorrer. Não seria esse, afinal, o princípio norteador do brincar?

Alguns anos mais tarde, tive contanto com um pequeno livro inspirador: A simbologia do movimento, de Lapierre e Aucouturier – dois autores que desenvolveram o que eles chamam de psicomotricidade relacional, baseada nos impulsos e não no controle segmentado do corpo. A base era o objeto relacional, que permitia e conduzia o acordo tônico entre os parceiros e parceiras de jogo. A indicação veio de meu parceiro Gil Amâncio, no Curso Livre de Teatro para Crianças, no Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.

Separei dois conjuntos de objetos, a fim de que trabalhar esse aspecto relacional e pensar a prática teatral. Primeiramente, os objetos que não possuem um significado de uso definido. Por exemplo: panos, cordas, barbantes, caixas de papelão, bastões (tipo cabos de vassoura). Eles se prestam aos acordos tônicos, com uma ampla maleabilidade. Por exemplo: uma pessoa segura um pano com outra pessoa e passam a brincar com isso – o mesmo podendo ocorrer com um bastão. Uma fase exploratória individual também pode ocorrer. E esse objeto pode significar muitas coisas.

Outra classe de objetos diz respeito àqueles que foram produzidos para uma utilidade – um fim determinado no seu uso. Exemplos: um guarda-chuva, um chapéu, um par de botas ou sapatos de salto alto. Aqui, trata-se de usá-los de modo a permitir que esse uso seja ampliado por experimentações em que eles mostram uma face até então desconhecida por nós. Antes de tudo, os objetos são prolongamentos do meu corpo – seguem a linha dos impulsos e vetores de movimento.

Por onde que a menina chegando com sua boneca, numa aula de teatro, é a imagem que me conduz a um princípio norteador da prática: o que vem – e continua vindo – é o que conta.

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

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