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A menina que veio com sua boneca para a aula de teatro

Aguardava na entrada da sala de práticas de teatro uma turma de crianças que tinham entre 9 e 10 anos de idade. Meados dos anos de 1980, em uma escola formal de ensino médio. Noto que uma menina chega com uma boneca na mão. Aquilo se tornou emblemático para mim, para o resto de minha vida: essa criança não tem que se desfazer desse objeto que forma um mundo para ela. Cada momento em que me deparo, inclusive com atores e atrizes, é sempre isso: o que vem – o que emerge no momento – deve fazer, de algum modo, parte do processo criativo.

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Walter Benjamin: o brincar e o rosto do mundo

“As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Nelas estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.”

Walter Benjamin, in Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Duas Cidades/Editora, 2002

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A criança e o movimento

Imagem: Traces – por Micagoto

Novamente pude observar crianças brincando sozinhas, isto é, sem direcionamentos por parte de adultos. Estava no Centro de Cultura do Banco do Brasil de Belo Horizonte, fazendo uma refeição leve no início da noite, sentado em um dos bancos dispostos no amplo pátio interno do prédio histórico. Nele, duas meninas por volta de quatro a cinco anos, brincavam. Provavelmente pai e/ou mãe estavam ali, numa das mesas externas do café.

O que essa breve observação me trouxe?  Ela me inseriu mais uma vez no motivo recorrente de minha caminhada nas artes da cena: a criança como inspiração – e não o contrário, querer ensinar teatro e/ou dança para crianças.  Não que uma prática pedagógica não possa ocorrer nesse sentido, é que ela teria outras bases. 

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O menino constrói e desconstrói

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Imagem: http://www.starwars.com/news

O menino, por volta de uns cinco anos, estava inquieto na sala de espera do consultório. A mãe demorava demais. Entabulei com ele uma conversa em torno da espada que  empunhava, meio desanimado.

Ele me disse que aquela era a espada do mal, do seriado Guerra nas Estrelas.

Entrei, então, nesse mundo. No poder que aquela espada poderia ter. O menino se entusiasmou e passou a falar do que a espada poderia fazer. Fazia gestos com a arma. Narrava a saga. Eu seguia alimentando esse jogo ficcional. Não havia mais tédio.

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Relato de um jogo dramático

Imagem: @Doug88888

Aqui, a descrição de um jogo dramático com crianças do 1 ano do Ensino Fundamental. A ação ocorreu provavelmente entre o final dos anos de 1970  início dos anos  80, na Escola Balão Vermelho. Resolvi manter a descrição na íntegra, como eu havia redigido na época. Junto, o relato da professora da turma, que é muito bacana. Mais do que nostalgia, vejo naquele momento princípios muito interessantes. Chamo a ateção também para as leituras que fizemos do jogo, na época. Eu mais interessado na dinâmica, no processo e no ritual. A professora, em compreender e situar o conflito temático estabelecido pelas crianças. Foi uma bela parceria: crianças, professora da turma e professor de arte.

Fico feliz de rever esse velho material. Hoje, ainda, ele é mais do nunca muito novo. Pois estabelece não um “teatrinho”, mas a experiência ritualizada, negociada e ao mesmo tempo vivida. As crianças estão jogando, atuando, resolvendo, percebendo e imaginando. Não estão se comportando num palco para um platéia. E não estão ensaiando e tampouco decorando falas.  

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Teatro antes do teatro: o brincar e a cultura das ruas

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Tive o privilégio de viver o teatro antes de conhecer o teatro. Como foi isso? Início dos anos 50, no nordeste de Minas, Teófilo Otoni. A televisão ainda não havia chegado lá. Mas já tinha ido ao cinema.

Então, isso já não era uma influência cultural? Sim, de qualquer jeito.  Mas tal matéria fílmica era muito diferente dos comportamentos representados diante do outro. Era uma janela tremulante e mágica. Vinicius de Moraes falava que a imagem projetada é como aquela pequena chama no meio da escuridão: um fascínio ancestral.

E o teatro? Eu nunca havia visto. Então, eu brincava de quê? E como se pode dizer que toda criança pequena faz teatro sem conhecer teatro? Meu avô fez para mim uma espada de madeira pequena. Vivi o tempo da feitura, do imaginário forjado ali na minha frente. Uma duração. E tive brinquedos comprados também. Revólveres que me encantavam, um ao lado do outro. Sim, os cowboys, eu os vivia intensamente. E uma espingarda de pressão com uma rolha e um barbante na ponta. Mas nada disso era  mais forte que outra coisa: o ato de brincar como poiesis. Pois o brincar antecede o brinquedo: é maior do que ele. 

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Há vida fora do brinquedo industrializado e dos shopping centers

 

Os dois meninos estão com onze anos. A moda é uma arma de brinquedo, que atira projéteis de plástico. O meu filho tem uma dessas, pequena, tipo revólver. Sim, acabei comprando para ele, de tanto insistir. Mas não só por isso: lembrei-me da alegria que me tomou quando ganhei de presente os meus primeiros revólveres de cowboi. E também das brincadeiras de assalto ao trem pagador em cima dos murinhos de nossas casas, nos anos 60.  E me lembrei ainda  dessa discussão meio estéril sobre a possibilidade ou não desses brinquedos induzirem a violência. Por tudo isso, pensei: vamos acompanhar isso… Ele queria uma arma enorme, mas aí eu achei que era muito exagero.

E então, ocorre que o amigo de meu filho veio passar o fim de semana com a gente. E trouxe junto uma enorme arma de brinquedo, uma imitação dessas que aparecem nos filmes e jogos eletrônicos. Um terror de arma! Aliás, uma estupidez. Não pelos motivos que estão por aí em circulação, mas simplesmente porque é um trambolho que impede qualquer imaginação. Meu diagnóstico é simples e direto, avesso ao cunho moralista: o brinquedo industrializado brinca sozinho!  Além disso, a arma de brinquedo era de um exagero só: impossível andar normalmente nas ruas sem chamar a atenção. Mas a coisa não se encerra aí: há toda uma cultura do tédio que é preciso driblar. E é disso que eu pretendo falar.  

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Lembranças de um recreacionista (III): entrevista ao Jornal do Balão

Le ballon rouge

 

“O espaço era um verdadeiro quintal. Sim, havia um pé de goiaba, um tanque de areia, terra e grama, um pé de jabuticaba, uma mesa enorme ao fundo, um grande pneu de trator deitado, pequenos pneus sobrando aqui e ali. Tinha escorregador e uma daquelas estruturas metálicas onde se pode subir etc. Não se tratava de organizar as crianças e de lhes propor uma atividade. Elas já estavam em ação, num processo auto-organizado. Difícil perceber e entender isso, pois aprendemos equivocadamente a perceber o brincar espontâneo e não dirigido como algo desorganizado”.

Essa a atmosfera do recreio, no Balão Vermelho, nos anos 70.  O texto acima é o trecho de uma entrevista que dei ao Jornal do Balão (Escola Balão Vermelho, Belo Horizonte, junho de 2011). O pessoal do Balão deu um título muito carinhoso: “Lembranças de um professor inesquecível”. Como não ficar lisonjeado?

A série de postagens intituladas Lembranças de um recreacionista mostra aspetos desse projeto, voltado a uma utilização criativa dos espaços e tempos do recreio. Um projeto no qual eu tive a oportunidade de participar e que foi minha iniciação como professor de arte. Conto um pouco do que aprendi ali com as diretoras Ieda, Bete e Leninha, com outras professoras e, principalmente, com as crianças.

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O que acontece quando se brinca?

 

Para além dos dualismos

Temos a infância e o brincar. Não quer isso dizer que as duas instâncias sejam uma só coisa. Pois a experiência do brincar ocorre também, em maior ou menor grau, nas sociedades adultas.  Retenhamos, no entanto, a imagem que nos parece, por vezes, insondável: a de uma criança brincando. O que acontece? O que se passa?

Acredito que essa é uma pergunta fundamental. As pessoas envolvidas na educação infantil veriam modificar seu próprio chão e, consequentemente o horizonte de sentido no qual atuam, caso se colocassem a pergunta: o que está acontecendo ali, no ato de brincar? Estamos nos referindo às ações não dirigidas, em que as crianças agem movidas pelo interesse intrínseco à própria atividade.

Voltemos no tempo, a uma época em que predominavam os brinquedos feitos pelas próprias crianças. Não veja nisso nenhum saudosismo ou desvalorização das situações urbanas, da entrada das tecnologias etc. Foram os refugos das máquinas, ou os maquinismos inventados, que constituíram muitos brinquedos. Separemos, no entanto, os brinquedos fabricados por adultos e destinados às crianças ou não (os soldadinhos de chumbo) dos brinquedos que as próprias crianças criam a partir de interações entre si e com o entorno.

Então, voltemos ao brinquedo fabricado pelas próprias crianças. E para dar um exemplo, lá está um menino, nos anos cinquenta, puxando por um fio de barbante uma lata de doce vazia e retangular, agora carregada de terra. O que está acontecendo?  

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Toy Story 3 ou o dia em que deixamos os brinquedos

Imagem de Kyle May

Há um dia em que paramos de brincar. Um dia em que guardamos nossos brinquedos. Não que isso aconteça necessariamente de uma só vez, porém, mesmo assim abandonamos, de um jeito ou de outro, nossas mais belas aventuras e partimos para um mundo opaco.

Algumas vezes, um sentimento de vergonha parece marcar essas passagens. Sentimos o olhar de um adulto, ou de colegas mais velhos, criticando ou desfazendo esse interstício de subjetivação e objetivação que é o brincar. Então, sentimo-nos sem chão. O que estamos fazendo, ainda aqui? Não é hora de parar de brincar? O desencantamento do mundo se repete na vida de cada um.

É com um sentimento estranho que olhamos para nossos antigos brinquedos. Para essa terra de onde fomos exilados para sempre. Toy Story 3, o filme da Pixar, mostra esse momento, conduz o seu final para esse fim da infância. Meu filho menor, por volta dos seus 10 anos, achou o filme muito triste. Ele ainda brinca.