O fenômeno das “mostras de arte” produzidas pelas escolas repete-se, sempre, a cada fim de ano. Há sempre uma preocupação com o que mostrar e com o como mostrar. Invariavelmente, não se pergunta pelo sentido de tudo isso.
O problema é que tais mostras se pautam pela mera espetacularização e, além disso, pela falta de entendimento da função expressiva na educação e do que pode ser um espaço e tempo compartilhados. Com a educação infantil, a situação costuma ser catastrófica: na maioria das vezes as crianças simplesmente não sabem o que estão fazendo. Com os adolescentes e jovens, as “mostras de arte” costumam se pautar por dois modelos “espetaculares”: aquele que toma por base o “show” e o de conteúdos “nobres” e “clássicos”, como as peças de teatro baseadas na literatura. No primeiro caso, o vedetismo é a tônica. E no segundo exemplo, as artes da cena não possuem autonomia. Estão sempre à reboque de outra coisa.
A associação das “mostras de arte” com o universo espetacular, tanto do tipo “show”, quanto do tipo “clássico”, tem por base toda uma cultura disseminada sobre o lugar das artes na sociedade. Como a maior parte dos educadores e dos pais não convivem absolutamente com as manifestações artísticas e culturais, resta sobretudo o recurso à cultura televisa. E o teatro, por seu turno, estará associado a alguma coisa parecida a isso, como as novelas dramáticas ou, ainda, o cinema convencional.
A arte, como mostra o filósofo Jacques Ranciére, é uma partilha do sensível. Nesse aspecto, toda arte é política. Isso não quer dizer o mesmo que um “discurso político”, mas sim que dispõe do sensível segundo os modos de visibilidade, de disposição do comum e de apropriação dos tempos e espaços. Do modo como o comum é partilhado, como cada um participa disso. Segundo Ranciére, “a partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço que essa atividade se exerce”.
As “mostras de arte” têm um a priori nessa partilha do sensível. Por que sempre se deve partir do princípio de que deve haver uma divisão de frontalidade entre quem assiste e quem se apresenta? Por que a sociabilidade, implícita e explícita nessa partilha, não pode se der por outros fatores que não aqueles já enrijecidos pelos papéis convencionais?
Tanto do ponto de vista de quem faz quanto de quem assiste, há uma partilha que vem sendo produzida e difundida como modelo pelas “mostras escolares”. Mais do que a televisão, tem sido a escola a grande reprodutora de uma partilha enrijecida do sensível e do comum.
A cultura do brincar, com suas linhas de errância, define outros modos de partilha do sensível: moleculares, rizomáticos, cartográficos e experimentais. Deveria servir de fonte de pesquisa, investigação e abordagem, de modo que possam inventar e deflagrar processos singulares. Por que não brincar juntos? Por que não reinventar, como os novos grupos experimentais de teatro e as criações performáticas, essa partilha do sensível, valorizando processos de apropriação tanto por quem faz como por parte de quem interage com as obras?
É possível uma outra política-partilha do sensível.
Mais referências –
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: entre estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005
– Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola. Por Luiz Carlos Garrocho
– Arte contemporânea e educação: uma palestra de Celso Favaretto. Por Luiz Carlos Garrocho
7 respostas em “A escola, as mostras de arte e a partilha do sensível”
Infelizmente a resposta à sua pergunta no primeiro parágrafo (qual o sentido de tudo isso?) é muito simples: a demanda que nós, os pais, criamos por este tipo de espetáculo ridículo.
Me parece que a escola tem de mostrar “produção” (estou falando da educação infantil) e de preferência uma produção que demonstre o conteúdo ao qual seu filho está sendo exposto. E que cá prá nós, é na maioria das vezes totalmente irrelevante para a criança.
Falo daquelas exposições onde vemos os “meios de transporte” feitos com sucata tão bonitinhos e ficamos impressionados com o uso dos recicláveis e com a podução de nossos filhotes. Mas infelizmente esse deslumbramento vem apenas dos pais, pq a criança não reconhece naquele carrinho a sua arte. Talvez pq nem tenha sido ela que escolheu fazer o carrinho, não escolheu o material que iria usar, talvez aquele carrinho tenha mais a mão da professora do que a dela.
O mesmo acontece com as apresentações de final de ano. Pessoinhas incomodamente fantasiadas tentando achar o seu espaço no palco, olhando fixamente para a professora de “expressão corporal” tentando acompanhar a “coreografia” com carinha compenetrada e pouco riso. E a platéia acha lindo!
Nossos filhos não são investimento, são gente! Não deveríamos pedir que as escolas funcionassem como bancos, onde a cada ano depositamos nossos filhos com a condição de obter o melhor retorno porque se assim não for, não existamos em procurar um banco que ofereça uma taxa de juros melhor.
Mas esta é a grande demanda e para quem nada contra a corrente está cada vez mais difícil, mas (ainda) não impossível.
Adriana
Tema polêmico num território (o escolar) tão reacionário. Sua discussão passa muito longe das realidades escolares, o que me causa grande tristeza. Ainda assim, façamos o possível…
Abraços,
Cristina Borges
Adriana expõe toda uma “cultura escolar”, na qual se inclui a demanda dos pais. E que, por sua vez, está imersa numa cultura “televisa” e meramente “espetacular”. A escola não deveria ser a mera reprodução desse estado de coisas. E Cristina nos apresenta, também, um diagnóstico desalentador da realidade escolar. Em matéria de arte as coisas vão muito mal na maioria das escolas. Vez por outra nos surpreendemos, também, com relatos de experiências muito interessantes. Mas é tão raro!
Aliás, basta abrir os livros de uma criança do ensino fundamental para notar os equívocos: conhecimento pronto e acabado, voltado para o esquema de provas de múltipla escolha etc. E na educação infantil o brincar somente é entendido como jogo e quase nunca como exploração sensível do mundo!
Porém, se a realidade é triste, não deixemos nossos corpos adoecerem. E para isso, é necessário continuar desejando. Como disse Cristina, “façamos o possível…”
Já acompanhei, em meus 7 anos na educação infantil da rede pública de BH, várias mostras em UMEIs. A última visitada por mim, no ano passado, aconteceu na UMEI Alaíde Lisboa (antiga creche da UFMG). Gostei de muitos trabalhos apresentados e percebi uma boa dose de experimentação. Apesar disso, senti(e ainda sinto) falta de produções e processos que relacionem-se com mais ou merecida profundidade com outros artistas e com a rica arte contemporânea (e, para recortar ainda mais, com a cena artística atual de nossa cidade). A aridez de conhecimento e interesse pela arte tem preservado clichês (colchas com desenhos de crianças que se multiplicam sem reflexões, espaços superlotados de trabalhos nas escolas e saguões de seminários de educação como se, com a lotação, o sentido mais amplo estivesse presente…) Tenho gastura da política, por exemplo, da Secretaria Municipal de Educação de BH que, uma vez por ano, em dois dias, fornece um espaço extremamente restrito na PUC para a apresentação de dezenas de trabalhos que praticamente se amontoam por ínfimos dois dias. No ano passado, senti-me bastante desrespeitada (e o clima era mesmo de desrespeito e competição) ao organizar o CANTINHO de minha escola. Tive que montar as coisas em minutos após a jornada de trabalho como se fosse uma gincana, já que uma das organizadoras estava com muita pressa de ir pra casa. Ela me tratou com enorme grosseria, dizendo coisas do tipo “anda, anda”… O processo de desmontagem é ainda mais grotesco: no segundo dia, ainda durante os seminários, as pessoas têm que tirar os trabalhos, o que impossibilita ainda mais a visitação daqueles que não tiveram oportunidade de conferir algo no primeiro dia. É tosco demais, se vc visse pessoalmente creio que acharia escandaloso.
Cristina,
O que você relata mostra como a arte é vista em grande parte das escolas. E bom que você tenha pinçado exemplos positivos e afirmativos, onde há uma “boa dose de experimentação”. Que, alías, deveria prevalecer, pois arte e educação sem envolvimento experimental será o quê? Parece que John Dewey ainda não entrou nas nossas escolas públicas. E não sou eu quem diz isso. Há estudos mostrando que as teorias de Dewey sobre processo e experimentação, conceitos de educação ativa etc. não entraram mesmo nas escolas públicas, somente nas escolas particulares, nos idos 50 por aí.
O que preocupa é a reprodução da idéia de arte como show. Como resultado… Mas o que é pior, sem a qualidade do “resultado” que o mundo do espetáculo apresenta. E os profissionais da educação não percebem o quanto estão “agenciados” (vinculados) a esse universo, a ponto de atuar desesperadamente em sua defesa. Não conseguem perceber como estão inseridos numa partilha do sensível que é a sua própria negação.
Espero que seu relato sirva de alerta para a Rede Municipal de Belo Horizonte e outras escolas. Nunca é tarde para começar a mudar conceitos e procedimentos. Aliás, os exemplos positivos estão aí mesmo, como você mesma mostrou. Tomara que possam servir não de modelos, mas de encorajamento para o resgate da expressão.
Abraços
Luiz,
Infelizmente, a concepção de serviço público é para atender ao pobre e, por isso, os esforços para garantir a boa qualidade nesses serviços são mínimos ou insuficientes. Outro grande problema é a situação de muitos docentes na rede pública: o acúmulo de cargos, dois ou mais, serve como complementação de renda e só. Muitas pessoas, por exemplo, fizeram o concurso para a educação infantil quase que exclusivamente para aumentar seus proventos. Não estão erradas em aumentar a renda, o que atrapalha, porém, é o modo como encaram esse segundo emprego: não se envolvem, pensam em sair até a situação financeira se estabilizar e, enquanto fazem o “bico”, pouco ou quase nada contribuem para a melhoria das escolas. Não posso falar sobre as escolas particulares, pois não as conheço, nunca trabalhei no ensino privado. Sei que as escolas públicas são espaços de ampla heterogeneidade – no bom e no mau sentido. Muitos desses docentes já estão, como você disse anteriormente, mas de um jeito um pouco diferente, “com os corpos adoecidos” e para complementar: “fortemente agenciados” e aprisionados nas teias de ferro das indústrias culturais. Os baixos salários, as condições precarizadas e a intensa falta de prestígio são também poderosos e não subestimáveis fatores de adoecimento e embrutecimento.
O que me anima a continuar é meu amor pela arte. Pode até parecer piegas, mas é amor mesmo, é alimento, é oxigênio. É algo tão bom e tão fundamental na minha vida que tenho uma vontade muito espontânea de partilhá-la. E nem sempre encontramos esse sentimento nas pessoas. Certa vez, numa formação com colegas de minha escola, propus que cada uma buscasse em sua intimidade algo precioso e que isso as acompanhasse e alimentasse suas práticas. Propus essa postura de partilha boa…
Abraços!
Adorei o comentario de todos e estou feliz em poder fazer parte dessa minoria que realmente reconhece que ARTE é muito importante para o ser humano. Sei que é utopia querer mudar o pensamento das pessoas que acreditam que arte e apenas montar mural, lembrança de dia das maes, dancinhas fofas de final de ano.Sei que isso ainda está em processo de assimilação por parte de alguns orgãos que se acham competentes para tal. Então sigo fazendo minha parte e passando a quem quer que seja minha pouca experiencia como arte educadora que sou.
Abraços a todos
Paula Cris