Outro dia, voltei a brincar de esconde-esconde. Eram três meninas e um menino. Como eles não se conheciam, encontravam dificuldades para estabelecer contato. Então, sugeri que brincássemos de esconde-esconde. E fui convidado a brincar também. Há muito não me envolvo com as sensações desse jogo. Desde quando? Nem me lembro… A brincadeira em tela é toda uma coisa de tempo, duração e linhas de percepção. Aqui, mais do nunca, estamos vivendo o ser ou não ser percebido.
Você fica num estado de quietude maravilhoso. Agora consigo sentir o que uma criança sente e percebe quando brinca de esconde-esconde. Por mais que você fique direcionado à ação, ao ato de procurar a oportunidade para se salvar no pique e, portanto, correr riscos, há uma suspensão de tudo por alguns instantes. Eu via o céu, as árvores, o lugar onde estava, percebia o estado do meu corpo agachado. E vinham sensações incríveis.
Fui transportado num segundo para as cenas de Madadayo, o filme de Akira Kurosawa. Um professor que vivia cercado, anos após anos, pelos seus alunos e alunas. E eles sempre lhes perguntavam se ele estava pronto para partir, para morrer. E ele sempre dizia “ainda não” (madadayo). Uma das cenas finais é sua morte e a reminiscência de uma cena de infância, na qual brinca de esconde-esconde e um dos garotos pergunta se já está pronto e ele diz: “ainda não”.
Tudo isso é um artesanato existencial. Então, posso entender porque os adultos, inclusive muitos educadores, costumam ter uma visão enfadonha ou utilitária do brincar. Vivem no espaço-tempo da ausência: uma interioridade absoluta (um monólogo interior infindável) que os aprisiona e os impede de viver na intimidade do fora (Blanchot). Uma exterioridade sem experiência e uma experiência sem contato com o corpo e o entorno.
Num minuto, uma das meninas me viu: minhas costas haviam me denunciado. Como dizem Deleuze e Guattari: “Haverá sempre uma percepção mais fina do que a sua, uma percepção do seu imperceptível…” Voltei a estudar outras vias de não ser percebido. E passamos assim uns bons momentos.
Confunde-se muitas vezes o brincar com a excitação de uma “ação para”, visando fins. As tais gincanas, por exemplo. Mas o brincar, como a delicadeza do esconde-esconde demonstra, é uma abertura para o aqui e agora de uma duração. Ou então colocam o brincar como mero recurso de aprendizagem. Ora, ele é a aprendizagem! O esconde-esconde, aparentemente tão simples, esconde e abre um mundo de percepções e sensações. A criança aprende, momento a momento, estratégias de não passar despercebido, entre outras coisas.
5 respostas em “Brincar de esconder: um modo de percepção”
Lembro-me até hoje de quando brincava de esconde-esconde… Era um troço!!! A respiração ofegante e eu tendo que contê-la para não ser descoberta… os olhos com medo, super atentos, a capacidade de enxergar aumentava, os olhos ficavam mais velozes, espertos. Os barulhos mais altos, assustadores… os esconderijos eram(são) mesmo outros mundos!…]
Aí você fala do brincar(no último §) sendo desfigurado e obrigado a ter um sentido utilitário empobrecido, coisas que a escola faz…
E mais uma vez a pergunta que não quer calar soa na minha cabeça e no coração: é possível mesmo, dentro das instituições, viver plenamente todas essas sutilezas(ainda que não as vivamos o tempo todo)?Que luta, Luiz, vou te contar! Apesar dos esforços, a teimosia da burrice muitas vezes é mais do que aceita: em alguns espaços e tempos, é também respeitada.
Parabéns pelos textos!! Sinto-me privilegiada por lê-los. Percorrer seus escritos é puro deleite!
Cristina,
Bonitas essas coisas que você diz. São sensações maravilhosas.
Acompanho pelo seu blog sua paixão pela criança, pela arte e pelo brincar.
Trabalhar em instituições não é nada fácil. Mas é também uma luta muito boa quando se tem a força, a coragem e as ferramentas adequadas!
Cada espaço inventa suas forças de subjetivação. Podemos ficar tristes. Podemos nos deixar levar pelas burocracias. Ou, ainda pior, fazer afrontamentos suicidas!
O brincar deve nos ensinar as artemanhas do viver!
E que bom ter pessoas como você, curtindo tanto as brechas iluminadas do brincar nas escolas públicas. Aquelas imagens das crianças brincando com sombras é puro deleite.
A sensibilidade é um estudo muito sério. Deveriam nos dar melhores condições. Mas, como nada é ideal, vamos trabalhando dentro do possível e fazendo dele nossa plataforma de criação.
Abraços
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De coração, obrigada pelos ensinamentos. Muitas de suas palavras têm me acompanhado em todos os lugares. A hora do parquinho na escola, por exemplo, nunca mais foi a mesma. Ainda que não veja as outras dimensões do brincar o tempo todo, hoje sei que elas estão presentes e são poderosas. E quando “sujo a roupa”, como vc disse em um de seus textos, experimento sensações indescritíveis. Após as vivências, costumo sair anestesiada e calada. Ao mesmo tempo que é torpor, é também atitude de reverência e de imenso respeito.
Abraços!!!
Acabei de descobrir seu blog. Explorá-lo promete ser minha brincadeira durante um bom tempo.
O que me encanta é o fato das crianças te enxergarem como alguém que pode brincar também. Elas não fazem isso com qualquer adulto. Escolhem a dedo. Como se em algum momento tivessem o poder de te encolher, de fazer você voltar a ser criança. E, geralmente, não dá muito certo você se auto convidar. Há um período de conquista, de flerte. Troca de olhares, gestos e poucas ou nenhuma palavra.
Fazem isso também com crianças novas no pedaço, mas pra gente há o passo de nos deixarmos levar pela brincadeira. O esforço de aceitarmos o encolhimento e de deixarmos de lado a massa da adultice.
… agora vou procurar os melhores esconderijos do seu blog…
Priscila,
Acredito que tem muitos esconderijos sim. Pequenas frestas no mundo cotidiano, jeitos de corpo, olhares, modos de ser… Este mundo pode ser terrível mas é também maravilhoso.
E o brincar nos dá a medida-desmedida de todas as coisas, não?
Muito interessante essa observação sua sobre como podemos nos fazer convidar em vez de nos intrometermos…
Abraços
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