Como não recair na nostalgia quando falamos de uma cultura lúdica da infância? O movimento retroage. E nos encontramos, assim, no território seguro de uma eterna repetição.
Ir além da nostalgia é a tarefa cotidiana daqueles e daquelas que têm a ludicidade da criança por tema e paixão. Em busca de algo que a lembrança não consegue abarcar mas que é pura memória e jogo vivo de acasos e afetos.
Sempre digo que a infância tem uma altivez inexprimível. E uma dor e alegria que a acompanham. A criança está submetida ao adulto, ao que ele impõe ou antepõe para a configuração do mundo. Mas a criança, mesmo quando sofre a ação adulta, tem um sentido de sobrevivência no futuro. O adulto está cercado e por isso quer da criança sua adesão moral. Ocorre que a criança habita frestas e hesita entre ações úteis. Nisso reside seu poder e sua superioridade.
A criança tem a condição virtual de fabricar mundos: de constituir uma poiesis do viver. Um filme lindo é Pelle, O conquistador: ali, a história da altivez do menino frente às humilhações. Para os adultos, que se enfurnaram no mundo do trabalho e das obrigações morais, da reprodução sexual mecânica e dos afetos servis que lhes correspondem, o mundo é tal como é. A criança olha isso com de um modo diferente. Com a tristeza de quem não pode enfrentar a força bruta e doente. Com um sentimento de soslaio, pois o instante sitiado é o feitio de uma paixão e não de uma necessidade, apesar de ostentar esse nome. O menino vai para um canto e inventa um mundo. Há dores caladas, mas também há clarões inundando os sentidos.
Uma superioridade das minorias. Ela reside nesse esgueirar-se por entre coisas. O adulto, inserido, dominante e hegemônico, tem um passado ancorado, a criança tem todas as reservas de futuro!
Ir além da nostalgia é apossar-se dessas reservas de invenção. Quando falo de uma cultura lúdica da infância eu me refiro àquilo que contém as potências do viver e do criar.
O que me toma por inteiro são blocos de infância, no dizer de Deleuze. Assim, não me ocupo tanto com o mundo de infância que vivi – e que tem todas as marcas da imagem-lembrança. Ocupa-me muito mais o sentido sempre aberto e renovado do que virá. Algo que a minha infância vivida contém de modo larvar, germinativo. Mas a criança que vivi é um passado coetâneo ao mundo que vivo. E o menino que fui continua sendo, me surpreendendo a cada esquina com seu olhar: o que você vai fazer da sua vida?
Talvez seja por isso, por ter o menino me inquirindo a cada instante, que eu não me ocupe tanto em inventariar as atividades infantis. Não que isso não seja interessante, dotado de importância e até mesmo curioso. Mas interessa-me sobretudo o inesperado do agora. Assim, busco o ato de brincar e menos a brincadeira. Esta última tem seu lugar, sua atualização e imagem fixada – não posso negar sua importância. Mas o brincar é movimento contínuo e imprevisto. É ele que produz a brincadeira. E a cada momento, novas brincadeiras poderão surgir, porque o brincar é desencadeante.
E não é que Heráclito de Éfeso , o filósofo pré-socrático, preferia jogar com as crianças do que discutir política com os adultos que lhe eram contemporâneos? Ele, o mestre do devir e de um saber fragmentário e sempre em fluxo, sabia o que escolher.
A cultura lúdica da infância é isso: puro devir.
Referências –
Imagem: Fily
2 respostas em “Cultura lúdica da infância: além da nostalgia”
Oi, Garrocho,
Cheguei até seu blog pelo Quintarola. Gostei de tudo, e especialmente deste post. Seu texto tem um tom poético e um sopro de infância que me encantaram. Parabéns.
Olá, Daniele
O Quintarola é um blog-quintal vizinho: não tem cercas, a gente vive passando de um lado pro outro!
Você é que me inspira com essa expressão: sopro de infância.
Deu vontade de escrever.
Abraços
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