Perguntamo-nos o que é aprender e como se pode aprender. Mas por que queremos ou devemos aprender? Os animais aprendem desde cedo a sobreviver. Nós humanos somente podemos contar, de início, com nossa fragilidade, nossa inadaptação, nossa dependência da cultura dos cuidados, que é também matéria e veículo de expressão e conhecimento. E vamos em busca de algo! Mas para quê?
Ciência, arte, filosofia e amor constituem nossos aprendizados. E assim adentra-se, seguindo Gilles Deleuze, na obra de Proust, Em busca do tempo perdido. Trata-se, para Deleuze, de uma “busca da verdade”. Pois, se a obra “se chama busca do tempo perdido é apenas porque a verdade tem uma relação essencial com tempo”. O prazer decorrente das nossas buscas, diz Deleuze, é um prazer pela verdade. No entanto, não temos a condição natural de buscar a verdade. Deleuze mostra, a partir de Proust, que “nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca”. E completa dizendo que não se encontra a verdade naturalmente, sem um esforço de autorecriação, posso dizer. Para Deleuze “ela se trai por signos involuntários”.
Nesse livro belíssimo que é Proust e os signos, Deleuze irá abordar essa obra de um modo magistral. Selecionei alguns trechos que falam da noção de aprendizado. Os signos de que fala Deleuze são: os ignos da mundanidade, os signos do amor, signos da qualidade sensível e, por fim, signos da arte. Estes últimos são os mais profundos e “transformam todos os outros”. Vejamos, então, via Deleuze-Proust, o que vem a ser um aprendizado.
“Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. A obra de Proust é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos.
(…)
As significações explícitas e convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior. À idéia filosófica de “método” Proust opõe a dupla idéia de “coação” e “acaso”. A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado. Fortuito e inevitável, como diz Proust. “E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio.”
(…)
Há signos que nos obrigam a pensar no tempo perdido, isto é, na passagem do tempo, na anulação do que passou e na alteração dos seres. Rever pessoas que nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo, que modificou determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos ou vincados. O Tempo, para tornar-se visível, “vive à cata de corpos e,mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica”.
(…)
Por isso, quando pensamos que perdemos nosso tempo, seja por esnobismo, seja por dissipação amorosa, estamos muitas vezes trilhando um aprendizado obscuro, até a revelação final de uma verdade desse tempo que se perde. Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente “bom em latim”, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende. Quem sabe como se tornar um grande escritor?”
DELEUZE, Gilles (2003) Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
4 respostas em “O aprendizado: Proust visto por Deleuze”
Amigo Garrocho,
Este texto de Deleuze é mesmo maravilhoso e dele podemos mesmo extrair signos e matérias as mais diversas a inspirarem práticas aqui e acolá. Em se tratando de ensinar-aprender, dessa relação, não vejo como não buscarmos a radicalidade na relação “com”, do “trabalhar com”, do “bricar com”, assim como do “ensinar com” e assim como este fragmento que recortei do seu post, “aprender com”
“Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende.”
Excelente post!
Um abraço,
RFelipe
Com o ensino que temos no Brasil Deleuze é quase um desvelamento, uma revelação – ele ataca, escava a devastação, o nada que as salas de aula, em todas as fases, multiplicam. O ensino é loteria, a profissão, a vida pública. O logro a nos consumir. A penúria que não é desastre, mas modo, jeito de existir. Apequenados, mas bem-sucedidos…
Ney,
Concordo que o ensino está difícil. Apesar das pessoas, sempre as pessoas, singulares, nos embates cotidianos contra as burocracias escolares, a dominação, o medo de experimentar.
E Deleuze nos dá ferramentas para nos reinventarmos.
Abraços
Abraços
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