Uma leitura que me marcou muito foi Hommo Ludens de Huizinga. Lembro-me de como fiquei tomado pela densidade do texto. O que me tocou em primeira mão foi a noção de que as instituições mais sérias, de certo modo, não passam de jogo. E em outra mão, marcou-me a noção de autonomia desse espaço que é o jogo:
“Ele [o jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida cotidiana.”
Comecei a estudar Piaget. Foi por força da novidade que era o construtivismo na educação. Dois livros tiveram seu lugar: A formação do símbolo na criança e O juízo moral na criança.
Durante muito tempo esses dois textos fizeram minha cabeça sobre o significado do brincar na educação. As teorias sobre o sensório-motor, sobre o jogo simbólico etc., passaram a estruturar minha atenção sobre o brincar e o papel do teatro na educação. Tive por base a noção muito clara de que a criança pequena não faz teatro, que ela “não comunica” o símbolo, pois este seria pessoal, intuitivo, não generalisável. Depois, descobri que havia duas coisas distintas: a) jogo dramático e b) jogo teatral. A partir da introdução de Ingrid Dormine Koudela ao teatral de Viola Spolin, que retoma Piaget, passei a enfocar minha atuação por essa linha de pensamento. Por exemplo: entendia a iniciação ao teatro com as crianças que somente já estivessem aptas a realizar a “comunicação teatral”, que seria combinação de jogo de regras e simbolismo (o aspecto mais inconsciente do segundo com a objetividade do primeiro).
Tudo isso, hoje, não se sustenta mais. Comunicação? Arte não é comunicação. Num momento, todo esse edifício ruiu de uma só vez. Como disse Juliana Saúde Barreto, arte-educadora e pesquisadora do teatro: depende da noção de teatro que está em jogo.
Depois li a escola russa: Luria e Vygotsky. Não pretendo sintetizar nenhum deles aqui, mas dizer muito mais em que eles me afetaram. As noções sobre as relações entre significado e objeto no brincar me parecem, ainda hoje, fecundas. Mas há uma visão equivocada sobre o brincar: este é tomado como uma espécie de atividade compensatória (Huizinga já havia demonstrado as limitações dessas concepções psicológicas do brincar), pois a criança brincaria de montar cavalo num cabo de vassoura porque não pode montar num cavalo real… Ora, não é nada disso. Essa comparação da criança – e de suas potências desejantes – em relação a um real a que teria que adaptar (Piaget também comunga das mesmas idéias adaptativas) expõe na verdade o agenciamento maquínico dessas teorias. Ou seja, supõe uma ciência e uma verdade ali onde apenas tratam a criança como um ser inferior e toda as forças desejantes na mesma ordem.
No meio disso, três autores forneceram contra-pontos essenciais para revidar o ataque racionalista com um vitalismo alegre e potente: Gianni Rodari, Lapierre e Gilles Deleuze.
Gianni Rodari libertou-me, com sua Gramática da fantasia, das amarras produzidas pelas formações teóricas que subjugavam o imaginário e a arte.
No meio disso, comecei a ler Lógica do sentido, de Gilles Deleuze. Ainda não estudara filosofia, mas o texto me trouxe um sopro de liberdade. No entanto, a minha formação filosófica (não tive cursos de Nietzsche e nem de Deleuze), acabou por corroborar a influência de Piaget e seu racionalismo.Somente anos mais tarde, no curso de mestrado em artes, voltei a Deleuze, que me tomou por inteiro, de um só golpe. Quanto à Lógica do sentido, ali estavam as intuições e forças que já haviam me reconduzido, no teatro-educação, às séries disjuntivas, à criação como acontecimento e singularidade, como ato de expressão, pois, é a partir de Lewis Carrol que Deleuze afirma:
“Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão”.
O que tem consequências para a arte-educação e a defesa do brincar. O instrumentalismo pedagógico transforma teorias em procedimentos, subjugando inclusive a criação. Tais sistemas englobantes transformam toda a alteridade numa derivação de seus próprios agenciamentos. No caso, a passagem da designação à expressão é um dos caminhos para entender o papel singular do brincar e da arte na educação. Deleuze mostra, ainda, que
“O bom senso desempenha papel capital na determinação da significação. Mas não desempenha nenhum na doação de sentido; e isto porque o bom senso vem sempre em segundo lugar, porque a distribuição sedentária que ele opera pressupõe um outra distribuição, como o problema dos cercados supõe um espaço primeiro livre, aberto, ilimitado…”
Com Lapierre retomei aquilo que o brincar uma vez havia me dado: as potências alegres e desejantes, a importância de não culpabilizar o desejo, a prioridade do movimento e do tônus no trabalho com crianças (e com atores também).
E outra leitura importante foi A educação estética do homem, de Schiller por onde aprendi sobre o impulso formal e o impulso sensível – de como o brincar é uma combinação dos dois. Em decorrência, a Crítica da faculdade de julgar de Kant levou-me, mais uma vez, ao brincar como atividade cujo fins residem nela mesma. E com Kandinski, as linhas e sonoridades do plano expressivo.
Outras leituras perpassam esses caminhos. Por agora, somente um olhar sobre algumas delas.