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O menino brinca sozinho: linhas de errância

“…[what] we are doing is living, and that we are not moving toward a goal, but are, so to sepeak, at the goal constantly and change with it, and the art, if is going to do anything useful, should open our eys to this fact”. John Cage

(tradução livre: ” [o que] nós estamos fazendo é vivo, e nós não estamos nos movendo em direção a um objetivo, mas estamos, por assim dizer, no objetivo mesmo e nos modificando com ele, e a rte, se ela tem alguma utilidade, deveria ser de abrir nossos olhos para este fato”).

Referências:

John Cage foi um músico e performer que exercitou e difundiu a experimentação artística, influenciando não só a música mas todo o campo da cena contemporânea (dança, teatro, performance art).
Imagem: LCG – Luís Felipe brincando nas areias do Rio São Francisco, em Pirapora-MG.

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Quando perdemos o corpo

Do blog New D (nomadology), uma interessante postagem sobre perda do corpo e infância, por Rogério Felipe:

“Desde que perdemos o corpo, e isso geralmente ocorre no instante mesmo em que deixamos de ser crianças, ou melhor, no momento em que deixamos de estabelecer conexões com a(s) criança(s) que nos habita(m), e que ainda assim, não nos abandonará(ão) jamais. Quando nos infantilizam, ou nos infantilizamos (eis uma perversa potência colaboracionista a irromper a cena), pois uma criança não é jamais infantil, nunca foi nem o será, ao menos naturalmente. Há aqueles entre nós que não conseguem separar o infantil da criança. Parece até que passam cola, um no outro (e em si próprios), criança infantil. Perdemos o corpo, fomos “desapossados” dele, do corpo, que passa a ser “mercadoria infantilizada”. E você chora, esperneia e faz pirraça perante a estranha constatação da ausência do corpo. A ausência do corpo não evoca em nós as forças de um incorporal ( tal como o estóicos definiram este conceito), pelo contrário, o não-corpo ou sem-corpo é ao mesmo tempo sem-alma.

Corpo-fabulação: o menino brinca no recreio

Estou no pátio vendo crianças de 5 anos brincando. Um menino corre, como os outros, chamando-me a atenção para um gesto muito simples: ele vem, sobe na muradinha onde estou sentado, abre os braços, olha para o espaço, depois desce e continua a correr. Não sei qual era a fantasia daquele garoto no momento em que ele fez aquele gesto. E nem seria preciso.

Posso extrair do seu movimento algumas notas. Para tanto, vou trabalhar com os elementos que me tocaram (os elementos sensíveis, dados à percepção): a pausa no meio da correria, o gesto de abrir os braços e olhar o espaço. Em primeiro lugar, seu gesto forneceu-lhe um poder: naquele momento, o gesto de abrir os braços adquiriu um significado forte, tanto pela pausa, pelo olhar, quanto pelo investimento em termos de imagem interior que se faz acompanhar do movimento.

Não era um gesto banal, dissolvido no meio de uma série de outros, mas um gesto preciso, solene. Dizer se ele voava ou coisa parecida leva-me para longe do seu gesto, pois estarei, neste caso, abandonando a presença que se impõe para me ater a considerações que não são imediatamente evidentes – o que não contribui para uma leitura do brincar. No seu gesto, posso concluir, o menino narrou um mito. Ele experimentou um poder – era perceptível isso no seu gesto, no modo de olhar o espaço em volta. Ao conferir significado a um gesto, o nosso garoto dialoga não só consigo mesmo (como muitos pensam), mas com as forças do universo.[1]


[1] Observação feita na Escola Balão Vermelho, Belo Horizonte, maio de 1996. Naquele momento, eu atuei apenas como observador. Nesse relato há uma mudança radical no meu modo de ver o brincar corporal: não mais o par significante-significado, mas as forças e potências da gestualidade. O que me levou, entre outras coisas, ao teatro físico e pós-dramático.

A criança pequena faz teatro?


Quando nos encontramos diante desta pergunta (se a criança faz teatro, no caso, a criança de até 10 anos de idade), primeiro devemos fazer outra pergunta: o que temos em mente quando dizemos
teatro?

A questão tem por suposto que os teatros são muitos. Não há uma técnica de teatro e, portanto, não haveria um método específico de ensino do teatro para crianças. Então, vamos lá:

1. A criança brinca. E quando ela brinca realiza uma exploração sensível do mundo.

2. Ao desejarmos ensinar algo às crianças deveríamos, primeiramente, perguntar o que poderiamos aprender com elas. Ensinar teatro às crianças pequenas pode ser como vender água na beira do rio.

3. Outra pergunta: na prática de Arte Educação ou de Teatro Educação a que nos dedicamos, qual a experiência sensível que as crianças estão realizando? Não podemos nos esquecer: arte é conhecimento sensível, mesmo que capture forças insensíveis.

4. O ensino de arte pressupõe, numa via, que a criança entre em contato com o mundo da arte. Ana Mae Barbosa, por exemplo, defende a triangulação: a) o fazer; b) a apreciação; c) a crítica e a análise. Nessa direção, este blog defende que há caminhos que conectam o brincar exploratório e sensível com as experiências artísticas (principalmente com as vanguardas artísticas, incluindo o teatro pós-dramático). Tudo depende de nossa capacidade de seleção.

5. Koellreutter, músico e compositor a quem sempre recorro, distingue, nos processos de formação artísticas, entre o figurativo e o pré-figurativo: o primeiro ensinaria técnicas que deduzidas de determinadas formas artísticas prontas e acabadas; o segundo abriria potências de experimentação. Em Artes cênicas, quais seriam essas potências?

6. Alinho os seguintes meios que podem ser potencialmente explorados:

Corpo

Exploração do espaço e de objetos de relação. Tais objetos, na trilha de Lapierre
& Aucouturier (veja uma postagemsobre os autores), são aqueles que permitem o contato da criança com um objeto que não dirija imediatamente para um jogo de regras específico ou para um uso já codificado e que permita, em primeria mão, um contato com o seu tônus corporal (fazendo a ponte entre o sistema involuntário e o sistema voluntário) e, em segunda mão, um contato com seus parceiros e parceiras. Os panos são excelentes objetos de relação. As cordas também, mas devem ser usadas com cuidado (pois podem enforcar facilmente). Bastões (cabos de vassoura) são outros objetos excelentes.

Sempre componho um baú com dois tipos de objetos: a) os objetos relacionais (panos etc.) e os que já trazem um histórico mais codificado de uso: telefones, bolsas etc. Nesse último caso, deve ser evitada a parafernália, pois as crianças ficam com opções em excesso, não sabem o que utilizar, ficando muito mais envolvidas com a confusão do que com os objetos. Procuro oferecer aquilo que foge a um senso muito “social”: não pode faltar um pinico, por exemplo. Um guarda-chuva proporciona plasticidade. E assim por adiante. Tal uso, eu condidero como o que deve ser mais cuidadoso, pois, na trilha de Deleuze, é a linha sóbria que nos permite criar.

Deve ser lembrado, ainda, o teatro de formas animadas. Peter Slade (veja uma postagem em que apresento o autor e discuto o teatro na escola) diferenciava, assim, entre o jogo pessoal (a partir dos impulsos corporais) e o jogo projetado (onde a ação parte de um objeto animado pela criança, como um boneco etc.). Os dois jogos podem ser combinados. Mas, de fato, é bom lembrar que, como as técnicas circences, o objeto animado livra as crianças da introspecção que o modelo do teatro dramático e interpretativo impõe. Além disso, o objeto é, na relação com o corpo, o primeiro e não o segundo para Lapierre & Aucouturier. Isso quer dizer que a criança pequena necessita de contato com os objetos e com os outros corpos (fazer coisas no mundo, tal como subir em árvores, empurrar os outros, cair, pular, puxar etc.), através dos quais regula o seu tônus e pode, assim, produzir um conhecimento sensível.

Imagem

A criação de instalações corporais e com objetos no espaço. A imagem em movimento. A plasticidade das criações.

Som

A pesquisa sonora. O levantamento de sons, seja por gravação, seja por execução ao vivo etc. Estudo musical e sonoro. A poesia verbal e sonora.

6. A criança pequena, na perspectiva do teatro dramático, não faz teatro, mas sim faz-de-conta. Peter Slade defende que a criança tem uma expressão própria: o jogo dramático. Este seria, para Ingrid D. Koudela, diferente do jogo teatral (no qual há comunicação palco-platéia).

De fato, essa comunicação é derivada do jogo teatral ou está na sua base. No caso do teatro pós-dramático para uma relação de ensino teatral, nós não teríamos por suposto a comunicação, mas a exploração sensível. Mais a presença ritual do que a comunicação teatral. Numa postagem, fiz referência a Maria Lúcia Pupo, pesquisadora do Teatro Educação, cita as características de um teatro pós-dramático que poderiam ser levadas em conta num processo de formação artística: transgressão dos gêneros;

b) negação da fábula.; c) presentificação; d) recusa da síntese em troca da busca de uma “densidade em momentos intensos”.

7. Transgressão dos gêneros

Podemos misturar comicidade com dramaticidade e formalismo (uso de objetos, instalações, experiências de poéticas vocais etc.).

8. Negação da fábula

Caractéristica essencial. O teatro dramático pressupõe uma construção da fábula em cena que é extremamente sofisticada: envolve técnicas que as escolas de teatro dramático procuram ensinar, na perspectiva da interpretação teatral etc. A criança pequena não irá dominar esses elementos, que pressupõe, inclusive, a presença de um diretor e de um dramaturgo orientando o processo de fora. No faz-de-conta das crianças, quando elas entram nesse nível de fabulação dramática e concatenada, elas realizam apenas ações esquemáticas, mas nunca o plano proposto.

A negação da fábula supõe que não há uma história, um além ocorrências cênica apresentam em termos de sua fisicalidade mesma. O público não vê o desenrolar de uma história concatenada, mas sim vivencia e compartilha de um acontecimento. Assim, as crianças estão livres de uma “comunicação palco/platéia”.

9. Presentificação e recusa da síntese em favor dos momentos densos

As vivências que estão ocorrendo no momento. Se elas são passíveis de repetição, isso não interessa. Aqui, há possibilidades de conexão com o campo da performance art.

10. O que pode ser ensinado, em termos de habilidades?

As aulas de circo, principalmente as de equilíbrio, malabares, etc. são as que mais proporcionam domínio de habilidades. Andar na perna de pau, etc. Nesse sentido, os brinquedos como skates, bicicletas, patinetes, são passíveis de serem utilizadas cenicamente. Isso sem falar na possibilidade de usos de tecnologias.

Por fim, independente de tudo o que foi dito, uma certeza permanece e atravessa todas esses planos: deixe, permita e favoreça que as crianças brinquem.

Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano

Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano é o título de um livro maravilhoso cujos autores são Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller. O primeiro, o biólogo chileno que, juntamente com Francisco Varella, conribuiu para modificar conceitos sobre a conexão corpo, mundo e conhecimento. Ela, psicóloga alemã, membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educacional do Instituto Estatal para a Educação na Primeira Infância e fundadora do Instituto de Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância de Passau, na Bavária.

Na Introdução, os autores defendem a idéia de que a linguagem surgiu, na história da espécie humana, entrelaçada com o emocionar. Mais do que linguagem como representação, eles abordam a conversação: uma “convivência consensual em coordenações de ações e emoções”. Partem do pressuposto de que a emoção é que define a ação. Assim, Maturana e Verden-Zöller tomam o ato valorativo como algo que precede a dimensão do necessário. O desejo, portanto, desempenha em nós, papel fundamental. Não dá para pensar uma realidade que se imponha sem o intercurso desejante. E não é o que o brincar faz o tempo todo?

A obra divide-se em três grandes capítulos: Conversações matrísticas e patriarcais, por Humerto Maturana, O brincar na relação materno-infantil (fundamentos biológicos da consciência de si mesmo e da consciência social), por Gerda Verden-Zoller, O brincar: caminho desenhado, por Gerda e Maturana. E por fim, o epílogo e um glossário.

A obra é um alento diante da predominância, na eduação infantil, de projetos extração cognitivista, na qual o lúdico tem desempenhado o papel de mero suporte para a aquisição de competências como ler, escrever e contar.

O livro discute as relações entre o amar e o brincar, trabalhando as linhas que caracterizam as culturas patriarcais e matriarcais, considerando-se a dominação histórica das primeiras sobre as outras. A corporeidade, na perspectiva do brincar e do emocionar, assume sua importância não só para a educação infantil mas também para uma ecologia humana.

Certa vez, convidado a discutir com educadores um projeto de educação infantil que envolvia a introdução de conhecimentos de modo interdisciplinar, porém, com grande carga intelectual, procurei ponderar sobre a necessidade de deixar as crianças pequenas brincarem mais, adiando a formalização para mais adiante. Uma das coordenadoras do encontro chamou-me num canto e disse: – Vi o seu sofrimento quando a tendência é sobrecarregar a criança pequena de estudos, deixando quase nenhum espaço para que ela brinque! De fato, era isso mesmo. A influência cognitivista trouxe para a primeira infância toda uma carga de cientificismo que não deixa de ser, também, um saber dominante. Não se trata, entretanto, de avogar o irracionalismo, que é, na verdade, o complemento do racionalismo. Porém, há saberes que não são considerados valores fundamentais para uma sociedade como a nossa.

Em muitos projetos de educação infantil há uma desconfiança, por vezes sutil, em relação à vida do corpo em sua agitação molecular. Na perspectiva de Maturana e Verden-Zöller, pouco espaços para os momentos em que pode se dar o entrelaçamento da linguagem com o emocionar. Por decorrência, o brincar só pode ter um lugar secundário: é sempre instrumento para outra coisa. Alguns desses projetos para a primeira infância querem, de um jeito ou de outro, formar pequenos intelectuais críticos e esquecem que, primeiramente, somos corpo.

Nesse aspecto, cito o interessante texto de Maria Isabel Brandão de Souza Mendes e Teresinha Petrúcia da Nóbrega, intitulado Corpo, Natureza e Cultura: contribuições para a educação. As autoras abordam, principalmente, as idéias de Maturana, Varella e Merleau-Ponty sobre o conhecimento, o corpo e o mundo. Defendem a primazia do corpo sobre os conceitos de representação (mental, principalemente). Trata-se de um corpo-ação, pois
“considera-se que na própria ação já há cognição, tendo em vista que a aprendizagem emerge do corpo a partir das suas relações com o entorno. Essa concepção de aprendizagem problematiza, portanto, a concepção intelectualista pautada nos pressupostos racionalistas da modernidade, a qual concebe o corpo e os sentidos como instrumentos no processo de conhecimento, ou então como responsáveis por enganos, por erros, sendo então descartados ou considerados acessórios no processo de construção do conhecimento.”

A recuperação do corpo que brinca nos projetos educacionais pode ser reivindicada, principalmente, quando temos em vista a primeira infância. O livro de Maturana e Verden-Zöller potencializa essa perspectiva, na qual a gestualidade e toda a gama de vivência corporal são reconhecidas como modos de conhecimento válidos por si mesmos. Diria que são outras ciências – outras modalidades de saber. A convivência do diferente, a aceitação da diversidade no mundo atual, a retomada da corporeidade, tais são os temas que se colocam, portanto, em pauta.

Referências:
MATURANA, Humberto R. e VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotii e Lia Diskin. São Paulo, Palas Atenas, 2004.