Brincar: reserva do porvir

A cultura lúdica da infância é a nossa reserva de porvir. E uma sociedade será mais ou menos aberta à renovação na medida em que consegue acolher as crianças e seu mundo de experiências. Mesmo que seja na lembrança.

De Miguilim, de Guimarães Rosa, guardo entre outras coisas o traço de um menino cuja dor esbarra na dor dos adultos cercados na sua própria ignorância. Um pai violento e uma mãe que sempre olha longe. Talvez por isso Gilles Deleuze diz que a infância é também triste: estamos todos submetidos ao outro.

Quando senti que eu estava em uma situação que não cabia de tanto sofrimento, eu guardei a foto de menino na escola que ficava em cima da mesa. Tirar o menino de lá foi meu primeiro gesto…

O que pode nos guiar, artistas, educadores, gestores públicos, empreendedores em relação à infância? Uma única coisa: acolhimento do porvir- isso o que a criança traz.

Por um ardil da natureza a criança guarda no brincar o que os adultos largam à margem, enquanto tentam dominar e submeter a si mesmos, a natureza e os outros.

Isso significa acolher a presença do outro. Crianças vivem no presente contínuo do brincar: elas nos ensinam o caminho. Disso, não restam dúvidas. Mas, há espaço para o brincar em sua vida, na sua escola, no seu mundo? Ou tais lugares já estão previamente definidos, seguindo padrões curriculares, pistas já percorridas, horizontes pré-fabricados?

Do brincar e dos fins – I

Ando pelos becos da Vila Nossa Senhora de Fátima, em Belo Horizonte. É sábado de manhã e uma menina de uns doze anos reúne em sua volta um grupo de meninas menores. Elas brincam de boneca e de fazer comida com terra. Enchem as vasilhas de brinquedo, fazendo formas. Percebe-se claramente nessa atividade a preocupação da menina mais velha em cuidar das crianças menores. Possivelmente esta é uma tarefa doméstica, isto é, não lúdica, mas concreta, bem real. Talvez o fim esteja lá: é preciso tomar conta das menores. E é justamente nisso que entra o espírito lúdico: o fim é transformado em meios que se dilatam através do envolvimento sensível com a experiência (mexer com terra, criar um cenário doméstico), satisfazendo necessidades que a finalidade posta (tomar conta das irmãs menores) não pode satisfazer. Necessidades que dizem respeito ao desenvolvimento daquelas crianças, inclusive da mais velha.. A brincadeira, portanto, passa a ocupar o centro da atividade.

Nessa visada do brincar através da teleologia das ações humanas, a utilidade de determinado produto que delas pode resultar é outro ponto de destaque. Um marceneiro faz uma cama para que se possa nela dormir, podendo igualmente servir de valor de troca. Uma criança faz uma cama para sua boneca dormir – não tem esta ação de preparar ou de fazer a “cama” uma finalidade extrínseca ao jogo. Diferentemente do adulto que, ao fabrincar um objeto, elege os meios para se atingir os fins, a criança faz dos meios o fim. O filósofo Emanuel Kant, ao abordar o juízo de gosto, fala de uma finalidade sem fim, de uma finalidade puramente formal. Uma finalidade formal não serve para nada… Serve para criar – serve para brincar.

A criança e o contato corporal

Norval Baitelo Júnior, um dos nossos grandes pesquisadores das artes do corpo como mídia primária, indicou-me um livro há alguns anos atrás: Tocar – o significado humano da pele, de Ashley Montagu. ressaltando a importância do contato corporal, principalmente com as crianças. O autor mostra como é vital para a sobrevivência dos mamíferos o contato corporal.

Também por outras vias, descobri a importância do contato corporal. Sempre que vejo uma criança adoecendo com freqüência, a primeira pergunta que eu faço para quem cuida é: você toca o menino/a menina? Você faz massagens na criança?

Nossa cultura, afro-descendente, é uma cultura de jeito de corpo, brincante, afetiva. Mas as pessoas vão perdendo esses jeitos: deixam de ninar, deixam de embalar. Os adultos não conseguem estabelecer um contato corporal afetivo e saudável entre eles e transportam isso para o seu relacionamento com as crianças. Uma das artes marciais mais interessantes sobre esse aspecto, é o Aikido. Tive, através do Sensei Ichitami Shikanai, residente em Belo Horizonte, do Nakatani Dôo, a felicidade de descobrir a importância da sensibilidade corporal. O Aikido é uma arte marcial cujo nome diz caminho de união com a energia (nossa e do adversário). Aliás, a técnica do contato-improvisação, desenvolvida peçp bailarino e coreógrafo estadunidense, Steve Paxton, inspirou-se em muito no Aikido: o contato corporal. Shikanai enfatiza a sensibilidade do toque, o conhecimento das intenções do adversário, o caminho sensível.

Assim, faço aqui uma pequena lista de estratégias de contato corporal para crianças:

– Para amanhecer:
Cheire muito a criança, entre em contato com o seu corpo;
Abrace;
Massageie a região em volta do umbigo, com movimentos circulares, primeiro para a direita, depois para a esquerda – deixe ampliar suavemente para o tórax;
Massageie a sola dos pés demoradamente;
De pé, dê um longo abraço, bem demorado.

– Para brincar:
Role com a criança no chão;
Deixe que ela deite sobre você (você de costas para o chão, ela de bruços sobre você), permancecendo nessa posição demoradamente;
Brinque de modular: você fecha os olhos e a criança modula seu corpo, depois o contrário;
Descubra o tônus dos corpos: acolher (fechamos sobre o nosso centro no umbigo), expandir (abrimos o corpo a partir do umbigo como uma estrela);
Brinque de lutar.
Faça yoga juntos.

Obs.
É importante que o contato corporal seja cuidadoso. Você deve ficar atento também para descobrir sempre os espaços que se abrem nos contatos corporais, desviando do apego, do contato “meloso” – busque liberdade. Há sempre em cada contato corporal um espaço entre – vazios que se instalam e que se tornam promissores virtuais.

Para saber mais:

– MONTAGU, Ashley. Tocar – o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano.
Body Mind Centering
Movimento Autêntico
Contato improvisação