Há um dia em que paramos de brincar. Um dia em que guardamos nossos brinquedos. Não que isso aconteça necessariamente de uma só vez, porém, mesmo assim abandonamos, de um jeito ou de outro, nossas mais belas aventuras e partimos para um mundo opaco.
Algumas vezes, um sentimento de vergonha parece marcar essas passagens. Sentimos o olhar de um adulto, ou de colegas mais velhos, criticando ou desfazendo esse interstício de subjetivação e objetivação que é o brincar. Então, sentimo-nos sem chão. O que estamos fazendo, ainda aqui? Não é hora de parar de brincar? O desencantamento do mundo se repete na vida de cada um.
É com um sentimento estranho que olhamos para nossos antigos brinquedos. Para essa terra de onde fomos exilados para sempre. Toy Story 3, o filme da Pixar, mostra esse momento, conduz o seu final para esse fim da infância. Meu filho menor, por volta dos seus 10 anos, achou o filme muito triste. Ele ainda brinca.
Meu outro filho, já adulto, me disse que só não chora em Toy Story 3 quem não tem coração. Chorei. Quem não sente a dor dessa separação, ou o dia em que estamos indo para o mundo da objetividade. Mundo do qual sempre queremos voltar depois, por meio de fantasias. Mas o brincar é algo diverso: ele produz o mundo real. Esse em que os sentimentos e a imaginação, assim como nossa capacidade de invenção não podem ser separados da produção material e social da vida.
É claro que comprimimos, num momento tomado como fictício ou mítico, a história de uma vida. Desde cedo encaramos o mundo em sua objetividade. Mas, enfim, quando somos crianças e brincamos, não nos separávamos tanto do nosso desejo. Ou melhor, de suas melhores e mais potentes linhas: aquelas que produzem o interstício, a dobra de si. Winnicott falava do brincar como um “espaço transicional”, que surge na cultura dos cuidados maternos. E que nos dota de uma potência para nos produzirmos num limiar entre o subjetivo e o objetivo. Nem submersos à crença e nem submetidos a um real dado. O ato de brincar, emergindo nesse espaço entre, é nossa primeira criação.
A experiência do brincar é social, mas não se limita aos brinquedos. Estes constituem um convite à atualização de algo que é virtual, o brincar. Os brinquedos, contudo, trazem sua magia, seu “feitiço”. Como dizia Walter Benjamin: a boneca que era parte de um ritual e depois passa a ser utilizada fora desse contexto. Ou o mecanismo reinventado, produzindo um mundo. Todos nós, se tivemos uma infância, brincamos com brinquedos inventados ou definidos como tais – de qualquer maneira, sempre um elo com a cultura do mundo. E como em Toy Story 3, um dia esses brinquedos tiveram que ser deixados de lado. Ou entregues para alguém, ou guardados num armário, como um mistério que a vida procura, no amor, na criação, no cuidado com os outros e as coisas. Tive soldadinhos de chumbo. Depois de plástico. E por fim índios, cowboys e soldados. Um mundo enorme, uma saga que nada devia a John Ford!
Antes disso e junto a esse tempo, porém, fabriquei sozinho ou com os amigos, meus próprios brinquedos. Toy Story não os considera. Já entra no mundo dos brinquedos produzidos em série, como objetos de consumo. Mas a magia é que nós os devolvíamos para uma terra banida. E ali reinávamos bárbaros e anárquicos. Outra coisa é o que nos faz perguntar: as crianças de hoje estão brincando? E digo isso sem qualquer saudosismo. A mercadoria-brinquedo, no entanto, parece tomar para si os sentidos todos. Com que ferramentas e invenções uma criança dispõe, hoje, para habitar nesse mundo de interstícios que é o brincar?
Volto ao tema: há um dia em que não brincamos mais. Toy Story 3 conta, em meio às aventuras, essa história. E esse dia pode ser que seja uma linha de todos os dias, sob o sol que banha esse planeta, no qual buscamos o sentido da vida. Pode ser, também, que a vida seja uma busca desse tempo que se perdeu. Por outros meios.
Referências –
– Sobre Winnicott: Espaço Transicional
– Walter Benjamin: Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação. Editora 34
5 respostas em “Toy Story 3 ou o dia em que deixamos os brinquedos”
O filme é bão mesmo. E legal depois reparar que todos os Toy Story são filmes sobre mortalidade. Seja reconhecer a própria realidade, ou a noção de que sua exitência é finita, até o desapego com o seu universo devido as modificações da vida.
Eu, por sinal, tenho um briquedo que o Arthur me deu.
Garrocho,
O Lucas reservou e esperou anciosamente para assitirmos juntos ao filme. Toda a saga infantil dos brinquedos marcou muito a nossa vida. Mas desta vez, mesmo avisados que o filme era triste….foi mais. Primeiro,vê-lo tentar segurar as lágrimas, e depois, o momento em que choramos juntos! O momento do choro? A hora em que seguem de mãos dadas para o inevitável!Não recuar do desejo e seguir com hombridade, tem retorno incalculável. Cosntatei assim, a boa entrada do meu filho na adolescência. Resquícios do que não se abandona. Ah! E o seu texto? Seu texto é um brinquedo!
Beijos,
Cris
Ei, Felipe
Não havia ainda atentado para esse traço da saga Toy Story de que você fala: da mortalidade, do desapego diante das mudanças. Agora, tudo toma um sentido muito interessante.
Vindo de você, então, adquire colorações muito bonitas. Dá vontade de rever um por um dos filmes.
Abraços
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Achei muito bacana. Só não concordo com o “partimos para um mundo opaco”. Porque? Será que é isso? Não acho que o mundo ficou opaco.
Ficou meio pessimista, não é? Como se o amadurecimento fosse necessariamente uma vida fechada… Mas tem um pouco desse lado. Talvez, pudéssemos, com a arte, a filosofia, o amor e o lúdico tornar o mundo menos opaco. Ou, quem sabe, jogar com opacidade e transparência, com os translúcido e o absolutamente escuro… Para não ser somente um jogo de palavras: quando tornar-se adulto é um abandono de muitas promessas…
Um grande abraço
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