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A crise econômica mundial e a volta para o brincar

Era noite e levamos as crianças para brincar na rua. São essas as condições atuais: é necessário que os pais estejam por perto. Quanto mais à noite!

Outro dia, o jornal dizia que no Bairro Vera Cruz, de Belo Horizonte, as crianças brincam nas ruas, as pessoas conversam nas calçadas e a violência é quase uma desconhecida naquele pedaço do mundo. Não é mais assim na maioria dos lugares.

Éramos dois pais, uma menina, dois meninos e uma noite de um resto de verão.

Estávamos ali para curtir as crianças. Isso quer dizer: nenhuma pressa. E quando nos permitimos não fazer nada ou somos surpreendidos por uma lembrança emergente, entramos numa duração: tempos que coexistem. Temos aquele tempo-espaço para nós e o que pode acontecer. E nada melhor que a rua onde,atualmente moramos. Como quase todo lugar, passam muitos carros, mas não há um tráfego intenso e desumano.

Normalmente, oscilo entre interagir com as crianças e deixar que elas mesmas descubram o que desejam fazer. E num espaço-tempo entre as sugestões de algumas brincadeiras, ( além dos cuidados necessários como o aviso de “olha o carro!”) acaba que eu e meu amigo comentamos sobre a crise mundial. Ele me diz que cem milhões de pessoas no mundo entrarão, inexoravelmente, no patamar da miséria absoluta. Isso sem falar no número muito superior daqueles que vão ficar muito pobres. Cita ainda números de demissões nas indústrias de São Paulo. Olhamos um para outro e para as crianças. Um buraco de noite se abre e nos perguntamos o que é isso.

Há alegrias! E vejo, no brincar das crianças, que no meio de tantas crises do capitalismo, as pessoas se reinventam. Um crasch no consumo. E uma disputa cada vez mais acirrada pelos altos salários (políticos, gerenciais etc.), enquanto a guerra se expande por todos os cantos e lugares. E vem o medo: do desemprego, de não pagar escola dos filhos, de não poder isso ou aquilo… Quando tudo é tão impermanente, os valores do mercado querem nos converter para um mundo de permanência. E como isso é impossível, compra-se mais e mais.

Os carros passam na rua numa velocidade que difere muito dos veículos das décadas passadas. São máquinas que entram com um poder de saltar sobre a terra, literalmente falando. Um fusquinha, lembrou-me uma amigo outro dia, fazia tremendo esforço para se deslocar. Agora não, as máquinas são de uma tecnologia que só ainda não podem voar! Enquanto isso, as crianças brincam, correm de um lado para o outro e nós vigiamos, pois a entrada de um carro na rua é a tomada veloz de um animal metálico, com vontade quase própria.

Lembro-me que num dia desses, quando brincávamos na rua, um homem catava latinhas e colocava-as num saco que levava às costas. Três tempos-velocidades: as crianças, as máquinas e o homem-coletor de restos industriais.

Como se disse: eis o deserto!

Cada um corre a lentidão-velocidade de seu plano: a poética do brincar, a sobrevivência do homem sozinho a colher latinhas, as máquinas que cortam nossas ruas com convergências rápidas. O fluxo econômico está contido nessa duração que partilhamos por uns momentos: a produção em série de mercadorias possantes para públicos consumidores sofisticados, a miséria no contra-fluxo recolhendo resíduos para a reciclagem industrial, o meninos com seus mapas intensivos.

Falamos das macro e micropolíticas. Meu amigo me lembra que a macropolítica é quem governa as localidades e impõem as lógicas próprias: o compartilhamento da vida sempre adiado, a meta em algo que transcende a realidade concreta.

Para lembrar Maturana, o brincar está no contra-fluxo da instrumentalização da vida: uma arte pobre, um tempo dos pobres (Milton Santos), mas dotado de uma riqueza e poder intangíveis: de reencantamento do concreto (Varela) e de fornecer as provisões do porvir.

Por isso as micropolíticas são lúdicas. Não ficam lamentando o fracasso do júbilo sobre a terra e nem aderem ao triunfalismo do poder sobre os recursos e sobre os homens. Não são sentimentais. E tampouco vivem de esperança, essa paixão triste, como diz Espinoza.

Mas há espaço para o lúdico? A capacidade humana de invenção é infinita: ardil da vida frente ao que lhe rouba, constantemente, suas potências.

De fato, os recursos são administrados pela macropolítica. Mas o estrago é tão grande que a todo momento convoca-se o biopoder, a capacidade de criação, o espaço de invenção, o tempo compartilhado.

Então, é uma volta para o brincar como um modo de habitar o mundo. Novos valores, novas atitudes diante da crise econômica. Retomemos o contato com as coisas em suas singularidades, com o chão que pisamos, o tempo-espaço de uma duração.

Há quem diga que nunca o capitalismo – essa máquina abstrata de desterritorialização e reterritorialização – deixou de fabricar seus próprios colapsos (e recuperações mais alucinadas à frente). Nossa arma só pode ser a atenção no momento único que não se repete: uma vida.

Vamos inventar (sempre) uma política de criação e liberdade. A crise pode nos indicar esse caminho. Depende de onde vamos colocar o foco: se na raiva da disputa ou se na malícia e alegria que o lúdico proporciona.

Por isso, o melhor não é o assunto (a crise), mas o que vivemos naquele momento: as crianças brincando, os carros passando e a gente conversando (uma outra brincadeira).

O melhor lugar do mundo é aqui e agora (Gilberto Gil – veja letra e ouça a música).

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

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