A criança fabuladora

A sala de visitas: entre o vedetismo e o confinamento

Na minha infância, a sala de visitas sempre foi uma tortura, principalmente quando não havia meninos com quem brincar: a obrigação de ficar quieto, ouvindo a conversa de adultos era puro sofrimento. As horas nunca passam numa situação dessas. O pior mesmo ocorre quando pediam para a gente demonstrar isso ou aquilo – é de doer.

Algumas crianças conseguem se sair bem na sala de visitas, em vez de afundarem de vez no sofá, ou se sentirem constrangidas com a demanda dos adultos para demonstrarem alguma coisa. Apresentam canções ou dançam, ou ainda repetem aqueles gestos considerados interessantes, conseguindo afinal se expressar de acordo com o jogo adulto.

Essa situação da sala de visitas não é muito comum hoje, numa sociedade mais permissiva, onde, além disso, a televisão toma conta em geral das salas e não deixa ninguém conversar direito. Porém, essa metáfora serve para demonstrar dois padrões possíveis de resposta às demandas adultas por demonstrações: um tipo de resposta é o caminho da timidez, o outro do vedetismo. Quando se pensa em teatro, muitas pessoas imaginam a criança desse segundo padrão, possuidora de um “talento”, “dom para a arte”. Associam arte, espontaneidade e vedetismo. A outra criança, confinada em si mesma, não será considerada “talentosa”, principalmente para as artes cênicas. Mesmo que a sala de visitas tenha mudado ao longo dos tempos, não mudou muito a atitude fundamental: a referência é cada vez mais o show, a habilidade para fazer alguma coisa na frente dos outros, num jogo de exibicionismo..

A criança como fabulista: viver é narrar

Durante muito tempo as crianças foram vistas como destituídas de cultura própria. Elas tornaram-se, nas sociedades modernas, objetos de investimento econômico. São preparadas para adquirir as capacidades e habilidades requeridas pela civilização industrial, cujo paradigma maior é o trabalho separado do lúdico. Recentemente, como demarcam os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, percebemos que se trata de um sujeito, um sujeito cultural antes de tudo.

E o que a criança traz no mundo de cultura? Depende do contexto. Há crianças que trabalham com os pais, mas não num trabalho em que são exploradas, e sim numa relação de complementaridade. Há um processo de interação física e verbal nas sociedades arcaicas e, podemos dizer, de resistência cultural. O trabalho desses adultos também é lúdico e não poderia deixar de ser: as forças da natureza e as forças da sociabilidade não podem ser tomadas somente de modo instrumental. A sobrevivência, nessas sociedades, não se reduz à utilização dos recursos naturais e da força social como meios para se atingir fins. Viver é narrar.

Defendo que a cultura lúdica da criança tornou-se meio de conservação e transmissão de uma necessidade humana básica: a de experimentar a vida para além dos ditames da sobrevivência.

Desse modo, com a separação entre lazer e trabalho, a infância, enquanto pôde dedicar-se ao lúdico, tornou-se depositária daquilo que os adultos perdiam quando se inseriam no mundo do trabalho. A cultura da infância tornou-se assim um elo de ligação entre as gerações e a cultura lúdica da humanidade.

Toda criança é uma fabulista, ou não poderia se entender como sujeito, construir-se como tal. E tudo começa com movimento e som. Quando vejo um menino de 04 anos correr no pátio da escola, subir num degrau, abrir os braços para o espaço, fechá-los e voltar a correr, isso me enche de uma coisa maravilhosa: vejo um poeta das ações físicas e me alimento de sua narrativa. O cosmos, ali, se concentra naquele menino. Ele fala do lugar da gente nesse mundo. Que é sempre o lugar de um narrador, coletivo ou individual. Todo o seu corpo parece dizer: “olha como eu sinto e concebo a vida…”

Esse não é o lugar do vedetismo. Faço aqui uma conexão com a atividade expressiva de orientação interna, de que falava o criador e pesquisador tetral Jerzy Grotowski. A brincadeira exploratória e sensível da criança é uma carta muitas vezes rabiscada, na qual se investe trajetos de afetos e percepções.

Quando brincamos, realizamos uma experiência. O espaço, o outro, a força da gravidade, a linguagem dos signos escritos ou dos ícones, a sonoridade, tudo é elemento de experiência sensível.

No entanto, valoriza-se ainda muito pouco essa dimensão fabulista de cada criança e do potencial proporcionado pelo lúdico – esquecem que cada criança, como cada ser humano potencialmente, é um ser poético. Porém, se nas sociedades industriais a criança, enquanto objeto de investimento econômico, podia brincar nas horas vagas e criar seu mundo de cultura, nas sociedades pós-industriais a criança não mais dispõe desse espaço, pois agora ela é consumidora em potencial. Inventa-se, para consumo, os modos de brincar e os brinquedos. Em troca surge um mundo sem experiência, de ausências preenchidas ruidosa e ostensivamente. Há um movimento, entretanto, de busca da cultura lúdica da infância, principalmente nas artes. O teatro-experiência alimenta-se, entre outras fontes, desse movimento.

Referências:


GROTOWSKI, J. Em Busca de Um Teatro Pobre. Editora Civilização Brasileira.

O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959 – 1969. Textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. Curadoria de Ludwik e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.