Novamente pude observar crianças brincando sozinhas, isto é, sem direcionamentos por parte de adultos. Estava no Centro de Cultura do Banco do Brasil de Belo Horizonte, fazendo uma refeição leve no início da noite, sentado em um dos bancos dispostos no amplo pátio interno do prédio histórico. Nele, duas meninas por volta de quatro a cinco anos, brincavam. Provavelmente pai e/ou mãe estavam ali, numa das mesas externas do café.
O que essa breve observação me trouxe? Ela me inseriu mais uma vez no motivo recorrente de minha caminhada nas artes da cena: a criança como inspiração – e não o contrário, querer ensinar teatro e/ou dança para crianças. Não que uma prática pedagógica não possa ocorrer nesse sentido, é que ela teria outras bases.
Solidarizo-me, nesse aspecto, com os/as artistas que se propõe a repensar essa prática sob o ponto de vista dos territórios existenciais que a criança traça no seu cotidiano lúdico.
Volto-me para as duas meninas. Notadamente, nenhum adulto observava ou se interessava por aquilo: crianças correndo de um lado para o outro. Os pais relaxavam numa das mesas dos restaurantes contíguos ao pátio, por vezes observando. Eu estava ligeiramente ocupado com minha refeição leve, que eu mesmo preparo e carrego comigo quando não posso comer em casa: arroz integral, sempre, e desta vez, acompanhado de bardanas. De modo que eu estava tão disponível para o aberto quanto concentrado na minha própria atividade.
Ressalto alguns d os traços dos movimentos daquelas meninas. Em primeira mão, registro o traçado diagramático no espaço. Ou seja, a topografia dos desenhos do percorrido do intenso. Que iam do mais amplo, que era correr e correr traçando linhas no aberto e, do mais próximo ou contido, quando uma delas ajoelhava-se numa pequena murada, para fechar o olhos enquanto a outra corria, mas não conseguir se esconder. E nesse esperar, nesse lugar de repouso breve, a menina interagia com a tela de um mapa digital do Centro Cultural. Ou, na proximidade dos contatos.
Qual era a brincadeira? Parecia mesmo um esconde-esconde. Mas esse era apenas uma espécie de ritornelo – de um chão de reiterações a permitir um fluxo e um ritmo. A regra do jogo não se estabelecia – podemos lembrar aqui Jean Piaget, quando ele diz que crianças nessa idade ainda não organizam sua experiência de mundo, posso dizer assim, pelo jogo de regra. Que imporia um descentramento de pontos de vista etc.
A brincadeira era a experimentação livre do movimento. Observei como uma delas corria: o corpo se solta deixando as articulações livres, a cabeça está também solta guiando os movimentos ou os direcionamentos. Lembrei-me dos estudos da Técnica de Alexander sobre o modo como andamos, principalmente da criança, que ainda não está tão definida e condicionada como os adultos – quando não artistas e/ou artífices, de algum modo, do movimento.
O corpo vai e se lança: ele cria espaço. A experiência do espaço é construída nessa investida – o corpo todo é volição, é desejo de criação espacial.
Já para os adultos, o espaço está estriado. O mapa em que investem é o do espaço intermediário: salvo algum incidente, ele só serve para ir de um ponto a outro, numa relação em que o fim determina o meio.
Há ainda o mapa dos impulsos corporais. Ora uma das meninas corre, como disse acima, deixando-se ir à deriva, em outro momento ela cavalga o seu próprio corpo – como podemos observar em muitas crianças pequenas. Meu neto mais velho costuma correr num movimento bailarino de sacudir todo o corpo, numa espécie de cavalgadura em que as articulações se soltam, os braços balançam e tudo vibra.
Quais a conclusões? Fiz várias anotações mentais de estudos de movimento para atores/bailarinos: os impulsos corporais que acionam livremente as articulações, os posicionamentos da cabeça nos direcionamentos vetoriais do corpo – a noção, enfim, de que há uma poética da ação e da dança que parte do brincar livre no espaço.
A criança e sua cultura lúdica é a fonte de inspiração permanente. E mais uma vez, isso me reforça esse motivo que retorna: ensinar teatro/dança para crianças é vender água na beira do rio. No entanto, podemos fazer dessa imanência uma busca por uma pedagogia do movimento que leve em conta o lúdico. Não o lúdico como estratégia diversionista, mas aquele que parte da própria criança – dos modos como ela constrói a experiência. Sim, o artista-educador pode propor experimentações – desafios, problemas, situações, percursos, objetos, exercícios… Porém, o que me interessa é perceber o como da criança – o que eu chamo de jeito de corpo de habitar o mundo.