Brincar: tekné e poiesis

O brincar é uma tekné e uma poiesis

O brincar é algo que antecede o brinquedo. Por isso digo que ele é uma tekné. Walter Benjamim já havia antevisto a imanência própria desse ato tão pouco compreendido pelos adultos. Não pelo fato de a infância permanecer algo inacessível, uma espontaneidade para sempre perdida. Mais do que isso, nós adultos tendemos a nos acostumar aos procedimentos que nos sujeitam – que produzem nossas experiências de vida ou de subjetivação. A criança está mais submetida, mas os adultos estão mais comprometidos com a produção do real.

Para quem tem a infância por tema recorrente, é duro perceber como as crianças estão limitadas aos contornos do comprometimento adulto com as formas dominantes de sociabilidade. Fugir de tais contornos, moldes e aprisionamentos, eis o que o brincar nos ensina. E a criança fabula também para fugir de tais cercos, tristezas e fechamentos do mapa do viver. Mas a fabulação, que é um modo de brincar, não é produto de uma limitação, mas antes a invenção primeira: uma pedra que chapisca na água é uma coisa que cada um aprende por si ou vendo o outro fazer. Há, no brincar, um fluxo de sensações a serem vividas. Um ardil da vida diante do ardil da razão estabelecida. Que tais estratégias encontrem nas crianças seus caminhos, é coisa que faz sentido.

Obviamente que o brincar não é um privilégio de crianças. Todas as culturas que deixam respirar a vida para além das resignações, por baixo, pelas beiradas ou por alguma brecha, têm o brincar em conta. As culturas do Brasil trazem essas vertentes de ludicidade: as capoeiras, os brincantes, as músicas, as festividades, danças e teatralidades, as belezas que se expressam em bom humor e flexibilidade, são todas essas culturas do brincar. No entanto, é a infância que armazena tais provisões, pois o mundo adulto sempre sofre mais diretamente a moldagem proveniente do trabalho, do esforço, do escopo das subjetivações que precisam segmentar, parar, identificar, reter uma energia livre, que é a da vida.

São também culturas permissivas, em que a mulher tem papel importante, que experimenta o feminino para além do que os machos adultos definiram como a experiência possível. Ou que tem, em conta, por outro viés, o visitante como elemento acolhedor do menino/menina, travando cumplicidades poéticas. Mas isso são outras histórias. O importante, aqui, é lembrar que a infância tem no brincar sua ferramenta primeira – sua tekné de entrada no mundo. Nesse sentido, o brincar é, também, uma poiesis (fabricação de mundos). E uma cultura sem infância é uma cultura fadada a morrer de tristeza. Se há alguma nostalgia, é a de uma vida de pequenas explosões de acontecimentos em comparação com a mesmice de um cotidiano pré-fabricado.

É comum pensar que o brincar resolve-se numa vazão bruta de energia. Para uma cultura em que a libido é somente pensada como desperdício ou alívio imediato, quando não, controle sobre a vida livre dos outros, torna-se penoso, senão um desdém, imaginar outro modo de funcionamento para a ação lúdica. Ora, quando brinca o menino/menina abre um mundo e inventa a si mesmo o tempo todo, sempre mudando. Quantas vezes não ouvimos, mesmo, educadores dizerem: – as crianças precisam extravasar a energia acumulada!. De fato, energia retesada quer espaço. Mas não ao modo como pensam os adultos. Talvez, uma dos motivos seja o fato de o brincar estar em produção incessante. Acompanhar uma criança pequena desnorteia qualquer adulto. A vida, ali, não cessa de pular, de voltar, de encontrar o repouso no movimento e o movimento no repouso, fazendo conexões de sentido no meio do disparate e do imprevisto. Com tanta oferta, imaginam os adultos que o brincar vale muito pouco. Esse é um grande engano. O brincar é pura sofisticação. Isso quer dizer que quando brincamos nós produzimos uma tapeçaria, um vitral, uma sinfonia de acasos, errâncias e outras poéticas do efêmero. E que podem se resolver num objeto, que, então, chamamos de brinquedo. Mas o ato de brincar não depende de objetos especiais: qualquer coisa pode ser utilizada.

Tarefa primeira para educadores e artistas livres e descomprometidos: aprender a ver o brincar. Para isso, é preciso muita disciplina. O espontâneo não come à nossa mão sem muito exercício. Ensinar os educadores a demorar-se sobre as brincadeiras das crianças é a tarefa primeira. Ter em mãos uma caderneta de campo para anotações, a tarefa seguinte. E anotar muito. A partir disso, de um olhar não preconceituoso, acolhedor e gentil, pode-se começar a entender o brincar e a sua importante função na educação infantil e no aprimoramento da vida no planeta Terra. Outro detalhe: não se avexe, brinque também!

Um conhecimento exploratório e sensível

Quando brincam as crianças estão conhecendo o mundo de um modo exploratório e sensível. Porém, seria um equívoco pensar o brincar em termos de pura cognição. Há muitas e muitas linhas e planos perpassando a atividade que encontramos entre as crianças. Algo que se pode encontrar entre os adultos quando estes se vêem livres do julgo do esforço voltado a fins, a que chamamos de trabalho. Em primeiro lugar, trata-se de uma polimorfia que não entende a hierarquização da experiência de vida. É possível que uma criança pequena persiga uma experiência sonora e a veja se transformar num desenho corporal ou num risco de giz sobre o chão. Há linhas no brincar. Para os adultos, isso pode significar não uma volta a um ser criança, mas àquilo que Deleuze chama de bloco de infância.

Chamo de exploratória a atividade que se permite seguir e surpreende-ser a todo instante. O meu foco é o brincar corporal. No entanto, entendo o brincar num sentido amplo, já que a própria criança passa da utilização de um objeto para uma atividade em que o corpo é a linha que se faz seguir. Veja o curso de um filete de água: ele flui. É disso que se trata precisamente quando se fala em fazer seguir. Obviamente que a criança não está numa dimensão totalmente exploratória o tempo todo. Há linhas de conservação, de repetição. Mas isso já é uma nova exploração: um ritmo, um tempo dedicado a um ir e vir sem parar. Um estado que é instaurado a partir disso. Quando uma criança corre em círculos, ou quando balança sem parar, quando repete indefinidamente – já se trata de explorar uma permanência que, de todo jeito, irá variar, mas a partir de elementos quase imperceptíveis.

O brincar, quando é exploratório, não conhece os objetos que chamamos de brinquedos institucionalizados. Refiro-me, aqui, à uma cultura da criança em oposição à cultura de mercado que procura impingir seus produtos. Seu modo pré-fabricado e experimentar o mundo. Nisso erra as pedagogias que oferecem às crianças atividades dirigidas, como os jogos em que se deve perseguir um fim extrínseco ou contornos já feitos, nos quais o resultado foi previsto de antemão. Nisso o brincar exploratório distingue-se do jogo de regaras. Neste último, já se tem por antecedência aonde se quer chegar. No plano exploratório, que é um plano de experimentação, que ocorre emerge da situação, do campo de percepção.

Lembrança do brincar: uma vivência lúdica de adultos ou uma brecha no cotidiano

Fui ver o pôr-do-sol num terreno baldio, na região montanhosa de Belo Horizonte, de onde se tem uma linda vista da cidade. De repente, chega um ônibus velho, caindo aos pedaços, e dele desce um grupo de operários com seus macacões sujos de graxa. Desceram já chutando uma bola, demarcando os gols e o campo. Nada verbalizado ou discutido – o corpo de cada um sabia quais eram os procedimentos rituais. O jogo começou em segundos, explosivo, quente e ágil. Naquele pôr-do-sol adultos brincavam felizes, aos gritos de alegria. Importava o corpo buscar o gesto preciso, driblar o outro, passar a bola, fazer gol. Não passaram vinte minutos e eles já estavam dentro do velho ônibus, que arrancava rapidamente e desaparecia na estrada. Tudo voltava a ser silêncio e quietude.

Referências:
Observação realizada no meio da década de 70 do século XX.

A criança pequena faz teatro?


Quando nos encontramos diante desta pergunta (se a criança faz teatro, no caso, a criança de até 10 anos de idade), primeiro devemos fazer outra pergunta: o que temos em mente quando dizemos
teatro?

A questão tem por suposto que os teatros são muitos. Não há uma técnica de teatro e, portanto, não haveria um método específico de ensino do teatro para crianças. Então, vamos lá:

1. A criança brinca. E quando ela brinca realiza uma exploração sensível do mundo.

2. Ao desejarmos ensinar algo às crianças deveríamos, primeiramente, perguntar o que poderiamos aprender com elas. Ensinar teatro às crianças pequenas pode ser como vender água na beira do rio.

3. Outra pergunta: na prática de Arte Educação ou de Teatro Educação a que nos dedicamos, qual a experiência sensível que as crianças estão realizando? Não podemos nos esquecer: arte é conhecimento sensível, mesmo que capture forças insensíveis.

4. O ensino de arte pressupõe, numa via, que a criança entre em contato com o mundo da arte. Ana Mae Barbosa, por exemplo, defende a triangulação: a) o fazer; b) a apreciação; c) a crítica e a análise. Nessa direção, este blog defende que há caminhos que conectam o brincar exploratório e sensível com as experiências artísticas (principalmente com as vanguardas artísticas, incluindo o teatro pós-dramático). Tudo depende de nossa capacidade de seleção.

5. Koellreutter, músico e compositor a quem sempre recorro, distingue, nos processos de formação artísticas, entre o figurativo e o pré-figurativo: o primeiro ensinaria técnicas que deduzidas de determinadas formas artísticas prontas e acabadas; o segundo abriria potências de experimentação. Em Artes cênicas, quais seriam essas potências?

6. Alinho os seguintes meios que podem ser potencialmente explorados:

Corpo

Exploração do espaço e de objetos de relação. Tais objetos, na trilha de Lapierre
& Aucouturier (veja uma postagemsobre os autores), são aqueles que permitem o contato da criança com um objeto que não dirija imediatamente para um jogo de regras específico ou para um uso já codificado e que permita, em primeria mão, um contato com o seu tônus corporal (fazendo a ponte entre o sistema involuntário e o sistema voluntário) e, em segunda mão, um contato com seus parceiros e parceiras. Os panos são excelentes objetos de relação. As cordas também, mas devem ser usadas com cuidado (pois podem enforcar facilmente). Bastões (cabos de vassoura) são outros objetos excelentes.

Sempre componho um baú com dois tipos de objetos: a) os objetos relacionais (panos etc.) e os que já trazem um histórico mais codificado de uso: telefones, bolsas etc. Nesse último caso, deve ser evitada a parafernália, pois as crianças ficam com opções em excesso, não sabem o que utilizar, ficando muito mais envolvidas com a confusão do que com os objetos. Procuro oferecer aquilo que foge a um senso muito “social”: não pode faltar um pinico, por exemplo. Um guarda-chuva proporciona plasticidade. E assim por adiante. Tal uso, eu condidero como o que deve ser mais cuidadoso, pois, na trilha de Deleuze, é a linha sóbria que nos permite criar.

Deve ser lembrado, ainda, o teatro de formas animadas. Peter Slade (veja uma postagem em que apresento o autor e discuto o teatro na escola) diferenciava, assim, entre o jogo pessoal (a partir dos impulsos corporais) e o jogo projetado (onde a ação parte de um objeto animado pela criança, como um boneco etc.). Os dois jogos podem ser combinados. Mas, de fato, é bom lembrar que, como as técnicas circences, o objeto animado livra as crianças da introspecção que o modelo do teatro dramático e interpretativo impõe. Além disso, o objeto é, na relação com o corpo, o primeiro e não o segundo para Lapierre & Aucouturier. Isso quer dizer que a criança pequena necessita de contato com os objetos e com os outros corpos (fazer coisas no mundo, tal como subir em árvores, empurrar os outros, cair, pular, puxar etc.), através dos quais regula o seu tônus e pode, assim, produzir um conhecimento sensível.

Imagem

A criação de instalações corporais e com objetos no espaço. A imagem em movimento. A plasticidade das criações.

Som

A pesquisa sonora. O levantamento de sons, seja por gravação, seja por execução ao vivo etc. Estudo musical e sonoro. A poesia verbal e sonora.

6. A criança pequena, na perspectiva do teatro dramático, não faz teatro, mas sim faz-de-conta. Peter Slade defende que a criança tem uma expressão própria: o jogo dramático. Este seria, para Ingrid D. Koudela, diferente do jogo teatral (no qual há comunicação palco-platéia).

De fato, essa comunicação é derivada do jogo teatral ou está na sua base. No caso do teatro pós-dramático para uma relação de ensino teatral, nós não teríamos por suposto a comunicação, mas a exploração sensível. Mais a presença ritual do que a comunicação teatral. Numa postagem, fiz referência a Maria Lúcia Pupo, pesquisadora do Teatro Educação, cita as características de um teatro pós-dramático que poderiam ser levadas em conta num processo de formação artística: transgressão dos gêneros;

b) negação da fábula.; c) presentificação; d) recusa da síntese em troca da busca de uma “densidade em momentos intensos”.

7. Transgressão dos gêneros

Podemos misturar comicidade com dramaticidade e formalismo (uso de objetos, instalações, experiências de poéticas vocais etc.).

8. Negação da fábula

Caractéristica essencial. O teatro dramático pressupõe uma construção da fábula em cena que é extremamente sofisticada: envolve técnicas que as escolas de teatro dramático procuram ensinar, na perspectiva da interpretação teatral etc. A criança pequena não irá dominar esses elementos, que pressupõe, inclusive, a presença de um diretor e de um dramaturgo orientando o processo de fora. No faz-de-conta das crianças, quando elas entram nesse nível de fabulação dramática e concatenada, elas realizam apenas ações esquemáticas, mas nunca o plano proposto.

A negação da fábula supõe que não há uma história, um além ocorrências cênica apresentam em termos de sua fisicalidade mesma. O público não vê o desenrolar de uma história concatenada, mas sim vivencia e compartilha de um acontecimento. Assim, as crianças estão livres de uma “comunicação palco/platéia”.

9. Presentificação e recusa da síntese em favor dos momentos densos

As vivências que estão ocorrendo no momento. Se elas são passíveis de repetição, isso não interessa. Aqui, há possibilidades de conexão com o campo da performance art.

10. O que pode ser ensinado, em termos de habilidades?

As aulas de circo, principalmente as de equilíbrio, malabares, etc. são as que mais proporcionam domínio de habilidades. Andar na perna de pau, etc. Nesse sentido, os brinquedos como skates, bicicletas, patinetes, são passíveis de serem utilizadas cenicamente. Isso sem falar na possibilidade de usos de tecnologias.

Por fim, independente de tudo o que foi dito, uma certeza permanece e atravessa todas esses planos: deixe, permita e favoreça que as crianças brinquem.

Marina Machado: a criança, o brincar e o teatro

Marina Marcondes Machado vem pesquisando há anos a cultura lúdica da infância e suas conexões com as artes, especialmente com o teatro. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Marina e tê-la como companhia numa oficina com educadores no Encontro Mundial de Artes Cênicas, em Araxá/MG. E descobrir afinidades: a infância como o plano sobre o qual educação e arte deveriam se voltar. Infância-memória e infância-presença: os meninos e meninas que fomos e as crianças todas com quem nos deparamos no dia-a-dia.

Marina publicou três livros muito preciosos: O Brinquedo-Sucata, Poética do Brincar e Cacos de Infância. O primeiro apropria-se especialmente das teorias de Winnicott, que é o psicanalista que escreveu o genial O Brincar e a Realidade. O livro é um clássico. E Marina faz uma bela introdução ao pensamento de Winnicott, expondo esse espaço que está entre o objetivo e o subjetivo, que é o da experiência lúdica. Já Poética do Brincar parte com Bachelard e abandona-se nesses vôos. Em Cacos da Infância ela discute as relações da infância com a criação teatral, especificamente com a questão do personagem criança.

Uma autora para ler e reaprender sobre a infância e o brincar.

Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola

Quando comecei a brincar com crianças – e era precisamente isso – eu não sabia nada sobre Arte-Educação ou Teatro-Educação. Apenas me deixava levar pelas linhas de errância do brincar exploratório e sensível das crianças.

Estava trabalhando na escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte, e era o ano de 1974. O fato de fazer teatro – e eu começava como ator – não me trazia nenhuma vontade de impor qualquer codificação às crianças. Brincava no recreio, em meio a areia, terra, jabuticabeira, goiabeira e um zumzum maravilhosos de crianças. Entretanto, somente anos depois, pude perceber que aquele plano, o do brincar, carregava as potências desterritorializantes que hoje busco para a criação cênica.

Com as crianças de 06 anos que deixavam a educação infantil, fiz uma apresentação que tornou-se exemplar para mim, hoje. Explico: de um tipo de ritualização cênica que não envolve a distinção tradicional entre palco e platéia, como é comum nas codificações dos jogos teatrais. E que fogia, além disso, às exigências tão comuns de exibirem crianças em ocasiões festivas. Os pais e mâes deram os braços e fizemos um longo corredor.. As crianças, então, engatinhavam por cima dos braços cruzados, atravessando uma ponte de corpos. Depois, brincávamos de esconder e as crianças faziam sons para que os pais as encontrassem.

A criação partiu de mim para as crianças. E não vejo problema algum nisso. Naquele momento, de tanto beber na fonte do brincar, encontrava-me livre para fazer, eu também, um convite em direção ao brincar, envolvendo também os adultos. Organizava o ritual, a festa, o encontro. Mas na direção das crianças – o que elas me forneciam quando brincávamos juntos.

Ali germinava um pensamento que, muitas vezes, deixei perder, em meio a tanta psicopedagogia que me abafou os sentidos durante anos. Um germem poderoso: a teatralização como ritual parcipativo. Acrescento nisso a possibilidade de o educador se envolver com o brincar. Não para enfeitar, arrumar, exibir crianças etc. Mas sim para se perder por uns momentos também. Consciente disso. Buscando a experimentação. No caso: um modo dos corpos se encontrarem num espaço e num tempo que não seja do auditório, da exibição, da cena codificada, da sociabilidade convencional. Fizemos uma ponte de corpos.

Obviamente, esse é apenas um dos caminhos que se abrem. Eu devolvia às crianças, pelo meu olhar, os traços de brincadeiras cênicas que elas viviam no cotidiano. Curiosamente, minhas aulas não eram nomeadas de teatro, mas de “aventura perigosa”. Hoje, consigo perceber conexões e ressonâncias com o campo da performance art. Veja bem: não estou dizendo que uma coisa é a outra. Antes disso: elas se tocam…

O teatro pós-dramático, a performance art, os hibridismos em arte, tudo isso dialoga com as linhas de errância do brincar. A Arte-Educação pode aprender muito com isso. No mínimo: os caminhos são múltiplos e diversos.

Olhar-criança

Deleuze diz em Francis Bacon: lógica da sensação, que “de um outro ponto de vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância.” Para o pensador que se avizinha do caos para torná-lo mais sensível, “há uma comunidade ds artes, um problema comum.” Tomo essas colocações de Deleuze, extraídas do contexto em que ele focaliza a obra do artista plástico Francis Bacon, para repensar os lugares a que destinamos as artes quando se tem em mente a Arte-Educação.

Isso é teatro, instalação, artes plásticas ou oque? Esta é a pergunta que procura estriar, pontuar e classificar o flutuante universo da criação artística.

Quando se fala em Teatro na Escola, como venho insistindo nesse blog e nas minhas perambulações em espaços diversos (de formação de atores, de trocas com pesquisadores da dança, de discussão com educadores…), tudo parece remeter aos códigos teatrais que devem estar subsumidos no sistema pedagógico. Quando se fala, nos cursos de licenciatura em teatro, no tema, quase sempre temos o enfoque dos problemas do teatro segundo uma parte de sua história. E como nos lembra Fernando Pinheiro Villar, toda história é parcial e a do teatro é uma das mais parciais, Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Grotowski. Parece que a cena fechou-se num ciclo de desenvolvimento linear, acumulativo.

Por tudo isso, faço um caminho oblíquo, entre tantos desfiles históricos. Trago, para tanto, o olhar-criança. Por outras vias, uma lógica da sensação.

Presenciei, num espaço em que as crianças da Vila Antena, em Belo Horizonte, ficavam nos horários em que não estavam na escola, a criação sutil de dois meninos por volta de seus 7-8 anos de idade.

A professora separava tiras muito finas de papel crepon juntamente com as crianças, para decorar algumas caixas. Ou seja: o de praxe nas pedagogias antigas de ocupar as crianças com alguma atividade construtiva. De repente, dois meninos esticaram uma dessas tiras, que possuía mais de 4 metros e foram se deslocando para fora da sala.

Criaram um espaço-movimento-instalação. Tomavam o cuidado para que a fita tão fina não se rompesse e foram descendo as escadas. A coisa que criavam (seu envolvimento corporal, o desenho-trajetória da fita vermelha, o seu contorno nas quinas das paredes e muito mais) era muito bonita, precisa e sensível. De repente, a professora ralhou com os meninos e mandou que eles parassem com aquilo!

Ela não havia aprendido a ver outra coisa que não as caixas prontas. E, possivelmente, uma pessoa formada nas escolas de teatro acharia apenas curioso, pois também não aprenderam a ver outra coisa que não a aprendizagem dos códigos teatrais.

Precisamos de um olhar transdisciplinar: um olhar-criança.

A questão que permanece: como inserir aquela forma num sistema de circulação de criação-recepção de arte. Ou ela deveria permanecer como simples brinquedo temporário?

Os circuitos de criação-recepção são ritualizações lúdicas do nosso cotidiano. Saber reinventá-los é a tarefa de artistas. Um olhar-criança pode trazer novas relações e possíveis. Para isso, é preciso que adultos saibam pesquisar esse modo de habitar o mundo que é o brincar sensível e exploratório da criança.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007

O Teatro-Educação e sua doença

Aplicação de um saber prévio: eis a doença que aflige o Teatro Educação. Necessidade de alicerçar a criação em elementos extraídos das ciências do desenvolvimento humano: eis a doença agravando-se.

Por que falo de doença? Nietzsche dizia que um dia a arte ainda seria a nossa medicina. Se entendermos por aí uma prática-pensamento de Teatro Educação, as coisas tendem a melhorar.

Ocorre que você pode ir por vários caminhos. A doença consiste em acreditar e viver como se o caminho fosse único. Ao contrário, são caminhos…

Cada um produz ou inventa o mundo que deseja habitar. No caso da cultura do brincar e de suas linhas de errância, importa acessar as potências do olhar-criança sobre o mundo.

Tenho visto que os artistas cênicos que se voltam para a Arte Educação muitas vezes aprendem, nos cursos de licenciatura principalmente, que é preciso estudar as etapas de desenvolvimento do ser humano, a fim de validar os exercícios teatrais. Aqui, a tese da aplicação: você tem um saber prévio sobre a cena que deve ser digerido por um grupo humano específico, sob sua coordenação ou liderança. Você estuda o desenvolvimento humano para ter um chão. A gente precisa de um chão: o lugar onde piso com os pés.

Eu já estou, sempre, num chão. De algum modo, já estou numa situação. O segredo consiste em tirar meu chão… Ou fazê-lo cantar. E entrar em conexão com outros cantos. Deixar-se modificar. Abandonar o território. Fazer-se nômade.

Outro jeito de acessar a criação em contextos de ensino ou em grupos humanos não voltados necessariamente para a profissionalização: o de encenador Robert Wilson nos anos 60 e 70. Ele tomava autistas e deficientes auditivos como instauradores de um novo plano da encenação. A questão não era, como tem se apresentado a muitos daqueles que se voltam para a educação inclusiva em arte, por exemplo, estudar meios de levá-los à arte – a um saber prévio. Seu caminho consistiu, ao contrário, em mostrar que já havia arte ali, no movimento daquele autista. A cena se modifica, o chão foge.

Trata-se, desse modo, de fazer que o plano da arte varie, defase, seja atravessado e saia à frente com outras potências, a partir da entrada de expressões humanas não afeitas ao universo da obra de arte entendida como obra acabada (coisa de algumas poucas centenas de anos).

Porém, eu não estaria gerando outra exclusão ao dizer que se trata de uma doença, o caminho único que tem vigorado no Teatro Educação? Justamente, se o que não mata engorda, a questão não está presa à estética do teatro dramático, mas à normatividade que tem imperado na abordagem do tema. A arte não surge como regra e norma, mas como um meio de dar sentido à vida. Que seja uma regra: ela vale enquanto instaura o chão que a sustenta! O teatro dramático, por exemplo, é uma sinfonia-máquina. É um desejo. Exclui do seu plano tudo o que é ruído. Mas, justamente, outros caminhos incluem os ruídos – as linhas de errância da criança são alguns deles.

As crianças e suas linhas de errância proporcionam outro plano. Em vez de procurar encaixar um mundo prévio nos alunos e alunas, você entra num plano de ciência nômade: seguir os traços de expressão que já estão acontecendo. E isso, é outra coisa.

Experimente!


OUTRAS POSTAGENS SOBRE O TEMA:

O Teatro pós-dramático e a educação
O Brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação
Teatro, educação & cultura do brincar

Imagem: Kandinsky – Composição VIII, 1923

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun

Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai…

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício – é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que “tomam conta” dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.

Categorias
Poética do brincar

Um modo de habitar o mundo: o brincar

Paul Klee: Som Antigo.

“O brincar é uma poiesis (do grego: produção, fabricação): – uma poética – abertura de mundos na vida cotidiana. O poeta é este que abre mundos – fabrica ficções – e sua matéria pode ser som, imagem, palavra escrita, movimento, pedra, objetos abandonados..”.

“Quando as crianças brincam com o corpo, elas estão narrando. Diante de uma sociedade como a nossa, “logocêntrica” e, podemos dizer, “adultocêntrica”, é muito difícil apresentar o brincar corporal em termos de narração do viver.”

“O brincar nos ensina que podemos nos relacionar com o corpo, com a natureza externa e interna, e ainda com os outros seres humanos, para além dos ditames da sobrevivência restrita a uma relação puramente instrumental. Quer dizer, para além de uma relação onde o outro é apenas um instrumento, um meio, para meus fins. Para entender isso, a educação de crianças teria de abrir mão de sua relação meio-fins, quer dizer, puramente instrumental: acreditar que o brincar somente tem direito à existência pedagógica se puder servir para ensinar algum conteúdo programático. Ao contrário, é por si mesmo e unicamente por si que o brincar pode atuar pedagogicamente. Para tanto, é preciso escutar o que o brincar e sua cultura nos estão trazendo.”

“A poética do brincar se apropria dos refugos da economia da sobrevivência. Seus espaços vazios, terrenos baldios, detritos, e toda sorte de materiais são re-apropriados – o mundo é habitado. Tudo isso é possível por que, para a cultura da criança a sensibilidade é algo que não pode simplesmente ser contornado. Para a criança, não se pode viver num mundo já dado, ela o habitará e nesses objetos, produtos residuais – abandonados ou em fase de abandono temporário porque ainda não servem para nada – reconhecerá, como diz Walter Benjamin ‘o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas’ (1).

Referências –

Obs. Trechos extraídos de um texto que escrevi em 2002, intitulado O Brincar como um modo de habitar o mundo, a partir de uma conferência do mesmo nome, no VI Fórum de Educação e Cidadania, promovido pela Secretaria de Educação de Camaragibe – PE, em 2002.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico – São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

Teatro, educação & cultura do brincar

Este blog insiste nas conexões entre arte e a cultura do brincar. Um dos temas a que venho me dedicando é o do Teatro na Educação. Nessa perspectiva, o brincar possui diversas funções. No contexto da Educação Infantil, algumas práticas-pensamento podem ser agrupadas do seguinte modo:

1. Uma das práticas mais comuns é a que considero ser um modo equivocado de trabalhar teatro com crianças pequenas: os teatrinhos escolares.

Essa prática, a dos teatrinhos escolares, caracterizam-se por expor as crianças pequenas diante de uma platéia, com representações de papéis, ações marcadas e falas previamente estabelecidas. São modos de trabalhar com a criança que ignoram o mundo de cultura das crianças e seu poder de fabulação.

A fabulação infantil é um modo de habitar o mundo e se dá através do brincar. Ela vive num contexto de vida. São as brincadeiras de quintal, de rua, ou de espaços que sobram para a interação livre e espontânea. Quando menino, por exemplo, brincava no chão quente do nordeste de Minas, vendo os retirantes passarem nos caminhões, fugindo da seca. O nosso mundo era uma mistura de imaginação e experimentação sensível da concretude do mundo: o zunir das tanajuras, a chegada da chuva, os brinquedos feitos de refugos da indústria (latas, etc.), a temporalidade do mundo circundantes (bolinha de gude em terra seca, finca em terra molhada, pipa em época de ventos). Nesse modo de habitar o mundo (que é o brincar), o fazer era puro sentido. De repente, fui para a escola. E representei uma peça de Natal. Estava diante dos outros. O que fazia, eu não sabia do seu sentido intrínseco. Chamo isso de teatrinho escolar.

Os teatrinhos escolares equivocam-se porque a criança pequena não partilha a chamada comunicação teatral. Uma ferramenta sofisticada. Porém, não universal. Apenas um modo de expressão e criação. Nem melhor e nem pior que os outros.

Ao contrário, como o bem demonstrou o inglês Peter Slade, as crianças possuem um modo próprio de fabular dramaticamente. Ele chama de jogo dramático infantil. Uma arte que existiria por direito próprio e que não é nem um veículo para o ensino de conteúdos escolares e nem uma derivação do teatro.

2. O brincar (e a fabulação infantil) como veículo pedagógico ou como etapa do desenvolvimento cognitivo.

Nesse modo, o brincar imaginativo e fabuloso da criança é reconhecido apenas como uma etapa do desenvolvimento cognitivo: as atividades da criança pequena não são vistas como expressão e por isso pertinentes aos problemas da arte, mas sim como veículo para aprendizagens. O brincar não é reconhecido em sua autonomia. Somente entrana escola servindo a um fim extrínseco a ele mesmo.

3. O Teatro-Educação baseado em jogos dramáticos e jogos teatrais.

Esse plano instaura um procedimento mais adequado: reconhece o valor da arte e da criação na educação infantil. Separa duas modalidades de criação, conforme a idade da criança: o jogo dramático infantil das crianças pequenas, com suas características de faz-de-conta, e o jogo teatral, voltado para o ensino da comunicação teatral e de suas ferramentas. No primeiro, concernente ao universo do faz-de-conta, estuda-se principalmente Piaget , Peter Slade e outros.

Já o jogo teatral é uma combinação de simbolismo e regra. Estamos justo no plano do jogo de regras. Trata-se de uma tentativa de iniciação teatral, em termos de Arte-Educação. Nesse caso, as crianças já estão numa etapa de desenvolvimento, segundo Piaget, em que há compartilhamento do símbolo. Portanto, pode-se dar para as crianças as ferramentas de uma comunicação teatral.

Viola Spolin tem sido a principal inspiradora desse plano. No Brasil, sua tradutora e grande divulgadora é a artista e professora Ingrid Dormien Koudela que, inclusive, traçou relações entre a artista-pedagoga e os conceitos de Piaget a respeito do simbolismo lúdico e da construção das regras.

4. A linha da exploração sensível do brincar.

Ela é corporal, experimental e tem por paradigma a cultura do brincar e sua relação com a infância. É o que este que lhes escreve defende.

Como mostrado em outras postagens, essa linha busca conexões entre o brincar, a corporeidade e a experimentação artística.

Não parte de estruturas e de regras. Parte da experimentação, da exploração sensível, proporcionadas pelo brincar corporal. Está entre dança e teatro.

O que esse plano trabalha:

– Não ensina teatro ou qualquer técnica às crianças pequenas. Não deriva seus procedimentos de qualquer noção de comunicação teatral;

– Não parte do plano figurativo, mas do pré-figurativo, segundo o maestro, compositor e educador, Koellreutter;

– Tem no brincar e na criança pequena seus paradigmas;

– Realiza conexões com a cultura popular brasileira, vista sob sua rebeldia inata, sua ritualização, sua fabulação, ritmos e modos de habitar o mundo (mas sem torná-los capturáveis pelos regimes de significação e representação).

– Interassa-se mais pelas linhas de errância do brincar e menos pelo jogo-de-regras. Há ressonâncias dessas linhas com os sistemas auto-organizativos, que incorporam elementos de caos (brincar exploratório) e que diferem dos sistemas fechados e estruturantes (jogo-de-regras).

São convites para artistas decriação cênico-corpórea e educadores rebeldes inventem suas próprias alternativas aos sistemas de Arte-Educação. Renato Cohen foi um dos artistas que trilhou esses caminhos, apontando para os procedimentos working in process na criação cênica. Uma pesquisa que poderia encontrar conexões com os procedimentos lúdicos.

Referências:

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.
SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1998.
________. Jogos teatrais na sala de aula. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DORMIEN, Ingrid K. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2001.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
_____________Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
_____________ e GUINSBURG, J. Do teatro à performance: aspectos da significação da cena. In: SILVA, Armando Sérgio da (Org.). J. Guinsburg: Diálogos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2002