O menino é o ancestral

Vejo o meu amigo com o filho pequeno, com ano e meio de idade. O pai é um brincante, artista e pesquisador.

Nômades, os dois. O menino às costas, o pai andando pelas ruas e avenidas. A cidade corre com a pressa dos motores e corações acelerados, enquanto os dois a atravessam oblíqua e panoramicamente.

Quando no chão, o menino pode explorar o mundo nos seus próprios pés. O pai ri o tempo todo. E o menino distancia-se sob o olhar seguro do pai – caminha pelas bordas e volta para ir mais uma vez ao encontro do novo. Juntos e separados. O menino sempre traz notícias do mundo. Produz acontecimentos. Inventaria sensações. Dobra paisagens. Cria espaços e durações. Trajetos que são linhas de errância.

E o pai pesquisa, estuda, maravilha-se com o que o filho traz e fabrica nessa exploração sensível.

É assim que tem de ser: o menino é o ancestral.

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O brincar e a educação infantil – I

Kandinsky big

A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.

Imagem: Kandinsky

Por que o brincar?

O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.

A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun

Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai…

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício – é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que “tomam conta” dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.