Categorias
Arte-Educação Geral

A escola, as mostras de arte e a partilha do sensível

O fenômeno das “mostras de arte” produzidas pelas escolas repete-se, sempre, a cada fim de ano. Há sempre uma preocupação com o que mostrar e com o como mostrar. Invariavelmente, não se pergunta pelo sentido de tudo isso.

O problema é que tais mostras se pautam pela mera espetacularização e, além disso, pela falta de entendimento da função expressiva na educação e do que pode ser um espaço e tempo compartilhados. Com a educação infantil, a situação costuma ser catastrófica: na maioria das vezes as crianças simplesmente não sabem o que estão fazendo. Com os adolescentes e jovens, as “mostras de arte” costumam se pautar por dois modelos “espetaculares”: aquele que toma por base o “show” e o de conteúdos “nobres” e “clássicos”, como as peças de teatro baseadas na literatura. No primeiro caso, o vedetismo é a tônica.  E no segundo exemplo, as artes da cena não possuem autonomia. Estão sempre à reboque de outra coisa.

A associação das “mostras de arte” com o universo espetacular, tanto do tipo “show”, quanto do tipo “clássico”, tem por base toda uma cultura disseminada sobre o lugar das artes na sociedade. Como a maior parte dos educadores e dos pais não convivem absolutamente com as manifestações artísticas e culturais, resta sobretudo o recurso à cultura televisa. E o teatro, por seu turno, estará associado a alguma coisa parecida a isso, como as novelas dramáticas ou, ainda, o cinema convencional.  

Categorias
Arte-Educação Geral Poética do brincar

O brincar, o sensível e a arte

Imagem: Tomás Rotger

Estou às voltas mais uma vez com a questão: como se dão as passagens entre um plano de sensibilidade, próprio da cultura lúdica da infância, e o plano de arte?

Esses três planos não existem em relação de continuidade e nem se apresentam como coisas idênticas. Porém, todo um movimento da arte contemporânea tem nos levado a repensar as relações entre a arte e a vida. A separação entre arte e vida foi, durante muito tempo, algo dado. Do lado da vida a instabilidade, o efêmero, o que se desgasta e se perde. Do lado da arte, o que se conserva (pelo menos no espírito), o que transcende nossa existência precária. São essas fronteiras que passam a ser questionadas, tornando-se menos rígidas.

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun

Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai…

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício – é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que “tomam conta” dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.

Teatro, educação & cultura do brincar

Este blog insiste nas conexões entre arte e a cultura do brincar. Um dos temas a que venho me dedicando é o do Teatro na Educação. Nessa perspectiva, o brincar possui diversas funções. No contexto da Educação Infantil, algumas práticas-pensamento podem ser agrupadas do seguinte modo:

1. Uma das práticas mais comuns é a que considero ser um modo equivocado de trabalhar teatro com crianças pequenas: os teatrinhos escolares.

Essa prática, a dos teatrinhos escolares, caracterizam-se por expor as crianças pequenas diante de uma platéia, com representações de papéis, ações marcadas e falas previamente estabelecidas. São modos de trabalhar com a criança que ignoram o mundo de cultura das crianças e seu poder de fabulação.

A fabulação infantil é um modo de habitar o mundo e se dá através do brincar. Ela vive num contexto de vida. São as brincadeiras de quintal, de rua, ou de espaços que sobram para a interação livre e espontânea. Quando menino, por exemplo, brincava no chão quente do nordeste de Minas, vendo os retirantes passarem nos caminhões, fugindo da seca. O nosso mundo era uma mistura de imaginação e experimentação sensível da concretude do mundo: o zunir das tanajuras, a chegada da chuva, os brinquedos feitos de refugos da indústria (latas, etc.), a temporalidade do mundo circundantes (bolinha de gude em terra seca, finca em terra molhada, pipa em época de ventos). Nesse modo de habitar o mundo (que é o brincar), o fazer era puro sentido. De repente, fui para a escola. E representei uma peça de Natal. Estava diante dos outros. O que fazia, eu não sabia do seu sentido intrínseco. Chamo isso de teatrinho escolar.

Os teatrinhos escolares equivocam-se porque a criança pequena não partilha a chamada comunicação teatral. Uma ferramenta sofisticada. Porém, não universal. Apenas um modo de expressão e criação. Nem melhor e nem pior que os outros.

Ao contrário, como o bem demonstrou o inglês Peter Slade, as crianças possuem um modo próprio de fabular dramaticamente. Ele chama de jogo dramático infantil. Uma arte que existiria por direito próprio e que não é nem um veículo para o ensino de conteúdos escolares e nem uma derivação do teatro.

2. O brincar (e a fabulação infantil) como veículo pedagógico ou como etapa do desenvolvimento cognitivo.

Nesse modo, o brincar imaginativo e fabuloso da criança é reconhecido apenas como uma etapa do desenvolvimento cognitivo: as atividades da criança pequena não são vistas como expressão e por isso pertinentes aos problemas da arte, mas sim como veículo para aprendizagens. O brincar não é reconhecido em sua autonomia. Somente entrana escola servindo a um fim extrínseco a ele mesmo.

3. O Teatro-Educação baseado em jogos dramáticos e jogos teatrais.

Esse plano instaura um procedimento mais adequado: reconhece o valor da arte e da criação na educação infantil. Separa duas modalidades de criação, conforme a idade da criança: o jogo dramático infantil das crianças pequenas, com suas características de faz-de-conta, e o jogo teatral, voltado para o ensino da comunicação teatral e de suas ferramentas. No primeiro, concernente ao universo do faz-de-conta, estuda-se principalmente Piaget , Peter Slade e outros.

Já o jogo teatral é uma combinação de simbolismo e regra. Estamos justo no plano do jogo de regras. Trata-se de uma tentativa de iniciação teatral, em termos de Arte-Educação. Nesse caso, as crianças já estão numa etapa de desenvolvimento, segundo Piaget, em que há compartilhamento do símbolo. Portanto, pode-se dar para as crianças as ferramentas de uma comunicação teatral.

Viola Spolin tem sido a principal inspiradora desse plano. No Brasil, sua tradutora e grande divulgadora é a artista e professora Ingrid Dormien Koudela que, inclusive, traçou relações entre a artista-pedagoga e os conceitos de Piaget a respeito do simbolismo lúdico e da construção das regras.

4. A linha da exploração sensível do brincar.

Ela é corporal, experimental e tem por paradigma a cultura do brincar e sua relação com a infância. É o que este que lhes escreve defende.

Como mostrado em outras postagens, essa linha busca conexões entre o brincar, a corporeidade e a experimentação artística.

Não parte de estruturas e de regras. Parte da experimentação, da exploração sensível, proporcionadas pelo brincar corporal. Está entre dança e teatro.

O que esse plano trabalha:

– Não ensina teatro ou qualquer técnica às crianças pequenas. Não deriva seus procedimentos de qualquer noção de comunicação teatral;

– Não parte do plano figurativo, mas do pré-figurativo, segundo o maestro, compositor e educador, Koellreutter;

– Tem no brincar e na criança pequena seus paradigmas;

– Realiza conexões com a cultura popular brasileira, vista sob sua rebeldia inata, sua ritualização, sua fabulação, ritmos e modos de habitar o mundo (mas sem torná-los capturáveis pelos regimes de significação e representação).

– Interassa-se mais pelas linhas de errância do brincar e menos pelo jogo-de-regras. Há ressonâncias dessas linhas com os sistemas auto-organizativos, que incorporam elementos de caos (brincar exploratório) e que diferem dos sistemas fechados e estruturantes (jogo-de-regras).

São convites para artistas decriação cênico-corpórea e educadores rebeldes inventem suas próprias alternativas aos sistemas de Arte-Educação. Renato Cohen foi um dos artistas que trilhou esses caminhos, apontando para os procedimentos working in process na criação cênica. Uma pesquisa que poderia encontrar conexões com os procedimentos lúdicos.

Referências:

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.
SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1998.
________. Jogos teatrais na sala de aula. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DORMIEN, Ingrid K. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2001.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
_____________Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
_____________ e GUINSBURG, J. Do teatro à performance: aspectos da significação da cena. In: SILVA, Armando Sérgio da (Org.). J. Guinsburg: Diálogos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2002

Caminhos de corpo: entre o brincar e o criar

Maria Amélia Pereira, educadora que exercita a sensibilidade na educação infantil, fala da necessidade de criarmos espaços para o brincar:

“As crianças que ainda não sucumbiram ao sistema que vem comprimindo seus movimentos, seja dentro da família, das escolas, nos diversos espaços sociais e na própria cidade onde ela habita, essas crianças sabem do que precisam e nos pedem muito pouco. Elas apenas querem seu lugar, seu habitat, com espaço e tempo suficientes para que brincando possam crer-ser, rodeadas por adultos inteligentes porque sensíveis, que saibam acolher o mistério da vida que se expressa dentro de cada uma delas.”(1)

Há conexões entre o brincar e o criar, tendo o corpo que se manifesta como plano de trabalho. Um espaço para o brincar na educação infantil: é a necessidade primeira que este blog defende. Trata-se de uma entrada na questão da Arte-Educação pelo viés do brincar e de suas linhas de errância.

O brincar de corpo: o que vem a ser isso? As culturas populares brincantes o sabem muito bem, principalmente quando as deixamos livres dos filtros categorizantes, que as transformam em mera folclorização, ou das capturas dos regimes significantes, que as congelam como representação. A cultura lúdica da infância é um armazén de saberes do corpo, guardando para a vida aquilo que os adultos perderam no processo de socialização que os submeteram.

Três planos apresentam-se:

A necessidade de espaços para o brincar livre e não dirigido.
Deve-se compreender o brincar aqui como uma atividade que tem uma finalidade intrínseca e não extrínseca – vale por si só. Os educadores do Brasil precisam conhecer o valor do brincar. O Brasil é um país brincante.

A conexão entre o brincar e o contato corporal: mais do que uma via de expressão, um caminho de corpo.
Que se volte sempre às potências afetivas. Para isso, é preciso que os contatos corporais não sejam culpabilizados na escola: correr, saltar, empurrar e ser empurrado fazem parte das potências corporais requeridas pela energia molecular do brincar. Modular essa necessidade é uma tarefa brincante. Não falemos em descarga de energia. Essa é uma visão do mundo do trabalho e uma concepção arraigadamente ocidental do que pode ser energia. E que é muito mais do que a idéia de energia requerida para o esforço. Energia é fluxo.

Comecemos pelo contato corporal como espaço de brinquedo. A criança pequena sabe disso: brinca, enquanto mama, com o cabelo da mãe. Há sempre um espaço entre, quando se trata de corpos em interação. Em casa, ao acordar: tocar o corpo da criança, pegar, cheirar, abraçar, massagear. Rolar juntos no chão. O centro vital no umbigo: movimentos que expandem e que recolhem. Deixar o tônus fluir.

E na escola, como isso pode acontecer? Com atividades e espaços que permitam o contato corporal mediado por objetos ou por espaços (e o objeto é um tipo de espaço e vice-versa). É o que propõe, por exemplo, a psicomotricidade relacional de André Lapierre e Aucouturier (1988).
O brincar como ponte para a criação.
Em vez de começar pelas representações (extração cognitivista), que se comece pelas energia molecular do brincar em sua agitação. E não vai aqui nenhuma defesa espontaneísta: o brincar é uma tekné existencial e estética. É necessário mostrar aos artistas voltados à educação que o brincar é a fonte mais rica – está tudo ali. Digo sempre aos artistas da cena: não queiram, ao se preocuparem em levar teatro ou dança às crianças, em vender água na beira do rio! Porém, os programas de ensino de teatro estão mais preocupados em territorializar um espaço liso, não-estriado, através de métodos que enfatizam a representação. É preciso/possível fazer conexões do tipo: corpo-brincar-movimento das vanguardas artísticas não-representacionais-cultura popular brasileira! Por isso este blog toma o brincar em suas linhas de errância…

Um amplo movimento em defesa pelos direitos da criança pequena brincar: em casa, na escola, nos espaços públicos. Eis a plataforma, nas palavras de Maria Amélia Pereira:

“O projeto para a educação das crianças brasileiras deve afirmar em sua direção o ato de nos entregarmos às crianças, para que elas brinquem e nós com elas brinquemos, reaprendendo a nos encontrarmos com nossos sonhos, fantasias e imaginação, exercício essencial à saúde mental deste nosso século.” (2)

Referências:
1. e 2. PEREIRA, Maria Amélia. A criança é um aprendiz nato. Site da Aliança para a infância: http://www.aliancapelainfancia.org.br/biblioteca/textos/detalhe.asp?nt=32. Idem.
3. Veja também: CRUZ, Maria Cristina Meirelles Toledo. Para uma educação da sensibilidade: a experiência da Casa Redonda Centro de Estudos. Tese defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA): http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-21052006-233605/ ;
LAPIERRE, André e AUCOUTURIER. A simbologia do movimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.