Marina Machado: a criança, o brincar e o teatro

Marina Marcondes Machado vem pesquisando há anos a cultura lúdica da infância e suas conexões com as artes, especialmente com o teatro. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Marina e tê-la como companhia numa oficina com educadores no Encontro Mundial de Artes Cênicas, em Araxá/MG. E descobrir afinidades: a infância como o plano sobre o qual educação e arte deveriam se voltar. Infância-memória e infância-presença: os meninos e meninas que fomos e as crianças todas com quem nos deparamos no dia-a-dia.

Marina publicou três livros muito preciosos: O Brinquedo-Sucata, Poética do Brincar e Cacos de Infância. O primeiro apropria-se especialmente das teorias de Winnicott, que é o psicanalista que escreveu o genial O Brincar e a Realidade. O livro é um clássico. E Marina faz uma bela introdução ao pensamento de Winnicott, expondo esse espaço que está entre o objetivo e o subjetivo, que é o da experiência lúdica. Já Poética do Brincar parte com Bachelard e abandona-se nesses vôos. Em Cacos da Infância ela discute as relações da infância com a criação teatral, especificamente com a questão do personagem criança.

Uma autora para ler e reaprender sobre a infância e o brincar.

Olhar-criança

Deleuze diz em Francis Bacon: lógica da sensação, que “de um outro ponto de vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância.” Para o pensador que se avizinha do caos para torná-lo mais sensível, “há uma comunidade ds artes, um problema comum.” Tomo essas colocações de Deleuze, extraídas do contexto em que ele focaliza a obra do artista plástico Francis Bacon, para repensar os lugares a que destinamos as artes quando se tem em mente a Arte-Educação.

Isso é teatro, instalação, artes plásticas ou oque? Esta é a pergunta que procura estriar, pontuar e classificar o flutuante universo da criação artística.

Quando se fala em Teatro na Escola, como venho insistindo nesse blog e nas minhas perambulações em espaços diversos (de formação de atores, de trocas com pesquisadores da dança, de discussão com educadores…), tudo parece remeter aos códigos teatrais que devem estar subsumidos no sistema pedagógico. Quando se fala, nos cursos de licenciatura em teatro, no tema, quase sempre temos o enfoque dos problemas do teatro segundo uma parte de sua história. E como nos lembra Fernando Pinheiro Villar, toda história é parcial e a do teatro é uma das mais parciais, Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Grotowski. Parece que a cena fechou-se num ciclo de desenvolvimento linear, acumulativo.

Por tudo isso, faço um caminho oblíquo, entre tantos desfiles históricos. Trago, para tanto, o olhar-criança. Por outras vias, uma lógica da sensação.

Presenciei, num espaço em que as crianças da Vila Antena, em Belo Horizonte, ficavam nos horários em que não estavam na escola, a criação sutil de dois meninos por volta de seus 7-8 anos de idade.

A professora separava tiras muito finas de papel crepon juntamente com as crianças, para decorar algumas caixas. Ou seja: o de praxe nas pedagogias antigas de ocupar as crianças com alguma atividade construtiva. De repente, dois meninos esticaram uma dessas tiras, que possuía mais de 4 metros e foram se deslocando para fora da sala.

Criaram um espaço-movimento-instalação. Tomavam o cuidado para que a fita tão fina não se rompesse e foram descendo as escadas. A coisa que criavam (seu envolvimento corporal, o desenho-trajetória da fita vermelha, o seu contorno nas quinas das paredes e muito mais) era muito bonita, precisa e sensível. De repente, a professora ralhou com os meninos e mandou que eles parassem com aquilo!

Ela não havia aprendido a ver outra coisa que não as caixas prontas. E, possivelmente, uma pessoa formada nas escolas de teatro acharia apenas curioso, pois também não aprenderam a ver outra coisa que não a aprendizagem dos códigos teatrais.

Precisamos de um olhar transdisciplinar: um olhar-criança.

A questão que permanece: como inserir aquela forma num sistema de circulação de criação-recepção de arte. Ou ela deveria permanecer como simples brinquedo temporário?

Os circuitos de criação-recepção são ritualizações lúdicas do nosso cotidiano. Saber reinventá-los é a tarefa de artistas. Um olhar-criança pode trazer novas relações e possíveis. Para isso, é preciso que adultos saibam pesquisar esse modo de habitar o mundo que é o brincar sensível e exploratório da criança.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007

Pipas, samurais-meninos e movimento

Portinari, Pipas, 1941

Dois meninos, de pés no chão, corriam de manhã, pipas às costas. Tempos que eu não via tal cena. Eram samurais pequenos subindo rua de asfalto, aos gritos, tentando salvar ou buscar outra pipa. Um vento de Brasil antigo passou como um filme gasto.

Vi a cultura do brincar e sua fabricação de mundos. Não dá para acreditar que existem meninos brincando de pipa, ainda.

Era uma guerra de ventos e de artefatos empinados contra.

Longe, a nostalgia. O que eu trago é o olhar sobre o menino e a menina e os mundos por eles inventados: um arsenal de coisas, fabulações e outras criações. Numa tarde, por exemplo, os adultos se divertiam com seus copos e suas comilanças, o que é natural quando a libido fica parada em certas zonas do corpo. Mas os meninos cortaram repentinamente os espaços, riscando trajetos. Vi os desenhos e pensei: uma arte de movimento e velocidades. De pura intensidade.

Guardei essas poesias. Não são imagens que cobrem liricamente mundo pré-existente. São mapas amassados nos bolsos e abertos para serem percorridos e mil vezes rabiscados. Os meninos inventam, a cada momento, o homem.

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A função do recreio na educação infantil: lembranças de um recreacionista I

Qual a função do recreio na educação infantil?

Pensar sobre esse tópico envolve também discutir as oposições clássicas que o processo de modernizaçã das sociedades produziu: trabalho X lazer. E a escola não cessa de reproduzir essa divisão. Um binarismo que foi produzido pelo mundo do trabalho, diga-se de passagem.

O primeiro registro em minha carteira de trabalho me definia assim: recreacionista (1). Era uma escola infantil, o Balão Vermelho, e eu deveria me dedicar ao momento em que as crianças brincam livremente no pátio. De um modo diferente dos professores, que ensinam uma matéria, o recreacionista é um profissional que cuida do recreio. Mas o que significa isso, o recreio, num projeto de educação infantil?

O que as educadoras (2) que estavam à frente do projeto pensavam era, justamente, superar a divisão clássica entre trabalho e lazer. O brincar era visto como uma forma de trabalho da criança e, como tal, deveria ser encarado. A proposta não era a de ensinar alguma coisa a alguém. Haveria que ocupar os espaços do recreio e, potanto, fazer dele não a oposição ao trabalho, mas um outro tipo qualificado de trabalho.

Estava começando a fazer teatro. Não havia nenhuma teoria. Nenhum conhecimento prévio. Bastava que acompanhasse as crianças, que estivesse ali com elas, de modo não dirigido.

Um quintal com areia, terra, um pé de goiaba e um pé de jabuticaba. Uma grande mesa. Meninos e meninas de 04 a 06 anos.

As crianças se envolviam com terra, areia, objetos diversos, contato corporal. A minha função, como recreacionista, não era a de criar uma ordem, na modalidade de jogos estruturados, em termos de uma atividade dirigida. O desafio era o contrário disso: envolver-me com as atividades livres das crianças, sem conduzí-las, descobrindo seu dinamismo próprio. E o filósofo Gilles Deleuze (3) fala de um plano de dinamismos, de velocidades e espacializações, de circulação do desejo, que é sempre um plano virtual, que não se opõe ao real, mas sim ao atual.

E como isso pode ser feito em tornar-se criança? E pode um educador torna-se criança?

Numa primeira instãncia, eu entrava em contato com a minha infância. Numa segunda instância, eu era introduzido, pelo desafio e coragem das educadoras e pelo convívio com o brincar, num processo novo de pensar e agir: a atividade que não se volta para um fim extrínseco a ela mas consitui, em si mesma, o seu próprio fim. Fui, posteriormente estudar isso em Kant e Fichte. Uma diferença que o brincar proporciona: astúcia da vida frente à violência do ato de tornar-se adulto.

Um educador, quando encontra-se com a cultura lúdica da infância, entra em contato com o que o filósofo Gilles Deleuze chama de bloco de infância: um fluxo de sensações que não se enquadram em nenhuma visão linear e cronológica do tempo (4).

Descubro, hoje, que naquelei ntenso movimento, de aparente desordem, havia ordem. Não falo de uma ordem estável, mas sim das ressonâncias do brincar exploratório e sensível como os sistemas auto-organizados – tema ao qual tenho devotado uma atenção maior. Enfim, um caos de criação contínua, que os adultos têm dificultade de entender. Não porque não possuem acesso a um possível mundo mágico. Muito mais porque não foram treinados a ver.

O que os educadores têm aprendido sobre o brincar? Como o têm exercitado? Alguém me dirá que a escola não foi feita para o brincar, mas para a aprendizagem. E nisso recomeçam os problemas: uma aprendizagem que exclui o brincar justamente porque, entre outras coisas, está comprometida com os nexos sociais a que a escola deve corresponder. No máximo permitido, o brincar é aceito desde que cumpra um tarefa que lhe seja extrínseca: ensinar algo. Não que vá discordar de que o ensino possa ser mais lúdico, mas sim de não se permitir que a ludicidade mostre a que veio e que funções cumpre para um mundo mais belo.

Isto é arte? A pergunta perdeu o sentido. A arte não.

Não vou passar por essas explicações, como se fosse preciso, para se iluminar, empurrar num envelope achatado um mundo de fabulações pela porta estreita dos racionalismos.

Mas é necessário definir, sob a pena de passar por irracionalista: trata-se de um reencantamento do concreto.

E quais são as implicações desse plano de lembranças?

1. O brincar não é uma descarga de energia, mas uma cartografia.

2. É um modo de conhecer o mundo e a si mesmo. Mas de tal modo que um e outro são continuamente reiventados.

3. O brincar é um modo de habitar o mundo.

4. No recreio, os educadores especializados deveriam: a) estudar aplicadamente o que as crianças estão ensinando; b) analisar os ritos infantis; c) pesquisar o modo como as crianças adquirem conhecimento e inventam o mundo; d) entender os relacionamentos coletivos e individuais, as formações de grupos, as zonas de vizinhança, as multiplicidades; e) estabelecer conexões com os sistemas auto-organizativos e meta-estáveis. Complete a lista…

Enfim, é no momento do recreio, de uma atividade livre e não dirigida, que podemos entender a sofisticação que é o brincar.

Mas, enfim, qual o sentido de um recreio num programa de educação infantil? Ali, naquele momento inicial, quando me deixei levar pelo brincar da criança em vez de conduzí-lo (como viria a me forçar, mais tarde, em diversos momentos), encontra-se a resposta. Há nisso, entretanto, todas as possibilidades de misturas e gradientes, passando de um brincar mais livre para um mais dirigido e vice-versa. Não há regras, apenas espaços para a experimentação e a criação.

Referências:

(1) Belo Horizonte, Escola Balão Vermelho, 1974.
(2) Maria Helena Latalisa, Idêda Brito e Bete Lobato, pedagogas e criadoras da Escola Balão Vermelho.
(3) DELEUZE, Gilles. O método de dramatização, in A ilha deserta e outros textos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2006.
(4) Virgínia Kastrup aborda as concepções cognitivistas e estruturalista da cognição, mostrando a diferença dessa concepção para a de Deleuze e Guattari que, a partir de Bergson, criam um conceito de infância como contemporaneidade e não mais como algo retido num tempo cronológico. Conferir: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/188/18813306.pdf

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Linhas de errância

Seja na criação cênica ou na pesquisa em arte-educação, sempre tomo por tarefa observar crianças brincando.

O mapa: a pesquisa do corpo que brinca.

Outro dia, vi dois meninos brincando nos jardins descobertos de um centro comercial, numa manhã de sábado, vigiados por uma moça que deles cuidava. Um dos meninos brincava com uma espada e uma fralda amarrada nas costas e, vez por outra, interagia com o pequeno escorredor que ali estava. O outro, porém, não se integrava a esses usos do corpo e da imaginação, disparando antes a correr pelo espaço aberto. Tinha os cotovelos quase encostados nas costelas, os braços se abrindo meio trêmulos, como asas de passarinho. De repente, parava e volta a correr em outra direção. Ele traçava linhas de errância. São linhas que não fazem conexão com os nexos imediatos de sentido que configuram nossas experiências.

A moça que tomava conta dos meninos correu desesperadamente no encalço do menino e o recolocou ao lado do irmão. De nada adiantava, pois ele logo saia correndo, concebendo nova linha de errância.

Descobri algo novo sobre a cultura do brincar.

Um movimento que cria outras possibilidades de desenho no tempo-espaço. São linhas de errância. Deleuze e Guattari freqüentemente falam sobre as linhas de errância e dizem tanto dos movimentos que as crianças criam, que por por momentos desnorteiam as referências das linhas costumeiras, quanto das crianças autistas.

Com o movimento daquele menino, descobri coisas novas sobre o movimento corporal. A precipitação do sentido num plano que não pertence ao do neurótico. Isso diz respeito, também, à dignidade de outros modos de ser. Não posso deixar de dizer que há um encanto do brincar do menino com a fralda amarrada às costas e sua espada cortando ventos inimigos. Quem não se deixa tocar por isso? Porém, no movimento do outro menino, instaura-se outro plano, menos reconhecível: uma trajetória de errância, sem significado imediatamente perceptível – ou melhor, que rompe com as significações. O plano do menino que dispara a correr num vácuo de espaço sem finalidade aparente (mesmo dentro do universos do brincar).

Então, poeta/ator/bailarino, você me traça um linha de errância?

Deleuze e Guattari(Mil Platôs, vol. 3) referem-se às linhas de errância dos movimentos das crianças autistas:

“Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos das crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as ‘linhas de errância’ e as ‘linhas costumeiras’. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existitur uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo” (p. 77).

Trata-se, portanto, de linhas (linhas duras e molares, linhas flutuantes e linhas de fuga). Somos compostos por linhas, definem os pensadores.

Não que o brincar da criança neurótica (reconhecível por nós) deixe de ser interessante. A perspectiva é, entretanto, outra: trata-se da dignidade de uma linha de errância que foi vista, quase sempre, como esando à margem dos processos de significação e, por isso mesmo, sem importância para a cultura.

Ao contrário, por estarem mesmo à margem dos regimes de significação, é que tais linhas de errância não só denunciam o fator inerentemente errante de nossas construções mais racionais, apesar de sua lógica molar, dura e pretensamente não fraturada, mas também produzem novas potências criativas.

Não vai aqui nenhum elogio de uma possível desrazão ou espontaneísmo da infância como modelo de criação. Não há modelos. No entanto, penso com Deleuze e Guattari: trata-se de investir na arte como domínio artesanal. E o brincar é o domínio do fazer criativo que a criança guarda, cultiva e nos oferece em primeira mão. O brincar tem tudo a ver, principalmente se tivermos em mente que tornar-se adulto é, em muitas culturas, submeter-se a uma realidade que, não deixando de ser uma invenção, aparece como totalmente objetiva.

As linhas de errância ocorrem tanto no brincar das crianças neuróticas (quando produzem um movimento não reconhecível) quanto nas crianças autistas (e nestas, talvez, estejam como nervuras expostas na experiência cotidiana).

Abro, portanto, a primeira página desse blog com essa anotação sobre as linhas de errância do brincar. Outras virão.

Bibliografia:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996.