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Lembranças de um recreacionista II

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Imagem de Gonzáles-Alba

 

Num outro texto abordei a Função do brincar na educação infantil. Volto às lembranças do recreacionista que fui. Desta vez, no entanto, quero cuidar de outra questão: a diretividade ou não-diretividade da ação. Como se colocar diante do universo lúdico da criança? Isso depende, naturalmente, do contexto. No caso, estamos abordando a função do educador no recreio escolar.

Como recreacionista, vivi experiências que me trazem, ainda hoje, insights muito interessantes. Antes de tudo, é preciso voltar ao lugar das lembranças. Como dizia no outro texto, tudo começou mesmo na Escola Balão Vermelho. Estávamos no início da década de 1970, colhendo os efeitos do recrudescimento da ditadura militar, das perseguições políticas, num clima de medo. E no meio disso tudo, três educadoras, Bete Lobato, Ieda Brito e Maria Helena Latalisa,  resolveram abrir um espaço para o porvir: uma escola para a educação da sensibilidade, para a busca livre do conhecimento e do estabelecimento de novas relações entre as pessoas. E como disse antes, começavam por mudar o conceito de recreio: não mais o oposto ao trabalho, mas o que lhe é complementar  e o resignifica em última instância – o brincar como o trabalho da criança, exploratório e sensível, rizomático e aberto.

Nos primeiros momentos, eu adentrava naquele mundo das brincadeiras infantis. As crianças tinham um quintal, com areia, terra, árvores etc. Não havia o medo de se sujar, como observo em algumas escolas hoje. Aliás, outro dia vi um tanquinho de areia numa escola que ficava a altura das mãos das crianças, para que elas não precisassem entrar nele – e nem podiam, pois era apenas uma espécie de canteiro. Ou seja, envolver-se com o mundo sim, mas apenas com a ponta dos dedos…

Era uma agitação molecular. Quando digo isso, quero dizer com base em Gilles Deleuze que as crianças vivenciam encontros não previsíveis nos espaços do recreio. Acho que na maioria das escolas, hoje, os espaços são excessivamente delimitados – isto é, delimitadores. Molares, para pensar de novo com Deleuze. As crianças já encontram brinquedos e formas de brincar moldadas, formatadas: um tanque de areia, brinquedos etc. Não que eles não possam existir, mas não precisam dominar a paisagem. No caso do Balão Vermelho, nós tínhamos à nossa disposição um quintal: aquilo que o nosso blog amigo, o Quintarola, tanto valoriza.

Qual a função do recreio na educação infantil? Naquela demanda do Balão Vermelho nos idos 70 estava uma ideia muito importante: espaço potencial de educação, de atividades de conhecimento, porém num modo não diretivo. Mais do que isso: com os materiais que a criança encontra a mão para manipular e se envolver de modo não programado. Misto de meio natural (terra, árvore, areia, espaços, pedrinhas, folhas, gravetos…) e produzido (espaços, brinquedos de arquitetura etc.).  E então entramos na questão: eu começava entrando num campo de agitação molecular, onde as coisas todas (toda sorte de brincadeiras e de encontros não planejados) já estavam acontecendo.

Que não se entenda a não-diretividade como espontaneísmo etc. E aqui reside a maior causa dos enganos pedagógicos: deixar como estar para ver como é que fica. Os educadores, nessa hora, estão tomando café, conversando, distraindo-se etc. Nós, recreacionistas, sabemos que essa é a hora.

Difícil ver e entender o que acontece nesse campo de agitação molecular. No outro texto chamo a atenção para os processos metaestáveis, sistemas auto-organizados, emergentes etc.  Os educadores deveriam ser educados a aprenderem a ler o ambiente flutuante e móvel do brincar não dirigido. E descobrir ali, também, suas repetições, suas linhas molares, segmentadas, pois que elas existem ali.

Mas eu não tive a oportunidade de olhar de fora o brincar das crianças. Fui logo caindo naquele mundo. Caíram meus modelos, minhas máscaras, minhas defesas. E entrei em contato com a vida pulsante do brincar nos quintais.

O que eu fazia? Eu me envolvia diretamente com as atividades das crianças. E eu me descobria brincando com elas. Não havia método, eu estava descobrindo as coisas… Maria Helena Latalisa, a Leninha, logo me deu um “presente” que me acompanharia por toda a vida em todas as minhas outras atividades: um diário de campo.

Aqui, também, o primeiro passo para adentrar num processo não diretivo e que evita, contudo, de cair no buraco do espontaneísmo. O registro das atividades, das perguntas, das questões… No emaranhado das experiências você puxa uma linha, acompanha seu desenvolvimento, sua direção… E então pode voltar, no dia seguinte, com outro modo de entrar naquele mundo.

Podemos perseguir, assim, outro modo de nos entendermos como recreacionistas: nem não diretivos e nem diretivos – em processo. Guardiões do processo, deveria ser o nome da profissão de quem trabalha com a recreação  na educação infantil. Muito diferente do recreacionista que tem por função apenas oferecer objetos (bolas, cordas para pular, jogos etc.) para as crianças. Ou que vive somente de “controlar” o momento do brincar.

O momento em que as crianças estão livres de atividades dirigidas, voltadas para o brincar somente, é uma cartografia de espaços e tempos. Uma configuração experimental, como aborda Gerda Verden-Zöller.

Voltando às anotações, através delas  você descobre um meio de realizar uma intervenção não intervencionista, se me explico bem.  Quero dizer que você toma posse de uma imanência e, a partir dela, interage com o meio, seus impulsos e o outro. Quanto aos cadernos, eles tornam-se uma criação sua, servindo a múltiplos fins. Os cadernos de campo foram meus grandes aliados. E continuam sendo. Em toda e qualquer aula ou oficina de teatro, ou mesmo ensaio, meus diários estão ali, rabiscando a pele das coisas, fazendo mapa.

Depois, passada a primeira fase – a do espanto na ação – comecei a trabalhar de modo cada vez mais diretivo. Passei do recreacionismo para a oficina de arte, no caso, de teatro. Mas, a cada vez que aprofundo mais nesse caminho diretivo, redescubro o primeiro dia, aquele em que cheguei num quintal e brinquei com crianças sem qualquer direção predeterminada. Apenas seguindo a intuição e as linhas de errância do brincar.

Uma volta mais diretiva exige, a toda hora, uma revolta menos dirigida.

Referências –

Imagem de Gonzales-Alba: Muro com manchas, rachaduras e grafia

 

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Encontro em Cuiabá: a produção teatral para crianças

Estive em Cuiabá no dia 06.10 para discutir a Produção Teatral para Crianças, na Mostra Internacional de Teatro Infantil.

A minha apresentação teve por base as relações entre a produção cultural e a cultura da criança. Entendo que a produção cultural não pode deixar de ser contextualizada: o significado da infância em nossa sociedade. Para tanto, tomei como linha mestra o que Clarice Cohn chama de “a criança como sujeito cultural ativo e produtor de sentido sobre o mundo” (Antropologia da Criança, ed. Jorge Zahar).

Contexto: a criança como produtora de cultura

Esta abordagem traz, assim, uma “novidade” que, entretanto, encontra barreiras: a) por parte de um sistema de ensino que não consegue aceitar a criança fabuladora, isto é, a criança como produtora de cultura; b) por parte da indústria cultural que somente trata a criança como mera consumidora (e muito da produção teatral destinada a esse público vai nessa direção); c) pelo sistema da reprodução social, que insiste em ver a criança como o ser que “ainda não é”, que deve ser objeto de investimentos para “ser” no futuro. 

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Tempo de brincar de quê?

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Portinari: Meninos pulando carniça, 1957

A infância tornou-se, em determinados momentos históricos e em alguns contextos sociais, detentora da memória lúdica humana. Ela conquistou essa memória porque os adultos estavam por demais ocupados com a produção e a reprodução da vida, deixando ao mesmo tempo às crianças um tempo mais livre, distante da sua vigilância.

Além de serem depositárias de uma memória que os adultos não podem, nas sociedades industriais, exercitá-la, as crianças reinventam a história humana. Inventam o tempo em que os seres humanos se envolvem corporalmente com o mundo. A criança fabrica o sentido e explora os sentidos antes de ficar memorizando abstrações. Entra em contato com a terra, deixando-a deslizar pelas mãos, sentindo o seu escoamento até fazer um filete comprido, quando é mais fina. Ou então socar, ajuntar, atirar ou formar, se é mais grossa e úmida. Muitos artistas continuam fazendo e por isso eles guardam uma estranha e aparentemente secreta sensação de felicidade e liberdade.

As brincadeiras infantis relacionam-se em muitos casos com o tempo, com o seu caráter de estação. Quando o que fazemos interage com o mundo físico natural e a sensibilidade não está embotada, a cada época uma onda varre o território e todos testemunham algo inelutável: é tempo disso, ou daquilo…  

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Um artesão do movimento

Num espaço aberto, observo de uma mesa, enquanto saboreio bem devagar um café, um menino com mais ou menos uns 05 anos, que brinca correndo em quase círculos. Há algumas poças de água, e ele corre em volta, algumas vezes passando muito perto, outras vezes pisando um pouquinho na água, de leve. O menino corre fazendo curvas bem amplas, para depois parar, quieto, assim, para nada. E então recomeça tudo de novo.

Óbvio que somente uma criança faz isso, sem finalidade outra que não a própria atividade. Se fosse um adulto, seria no mínimo uma pessoa tida como anormal. Ou, então, um artista do movimento… O que é o menino, quando brinca (com) o corpo, senão esse artesão do movimento?
Não estou dizendo de um ofício, que o ofício do menino é brincar. Estou dizendo de um ser que interage sensivelmente com o mundo e que traça desenhos intensivos.

Seu avô – e tudo leva a crer que era – entra naquele espaço. Ou tenta. Vai em direção ao menino. Raro ver uma pessoa mais velha, assim, disposta a brincar a brincadeira de um menino. Também, como os meninos, os avôs se prestam para as atividades sem finalidades produtivas…

Os pais vão saindo, chamando, mas o menino não para – continua a correr nesses amplos quase círculos. O avô vai e imita um avião com os braços abertos. Ahh, acho que entendi: ele traduz o movimento do menino, suas curvas, em movimento de um avião. O avô quer dar significado ao movimento do menino.

O menino observa o avô. E não para. Num momento parece que ia fazer como o avô fazia (imitar um avião), mas não, após um ínfimo de imitação – quase uma concessão, se entendi bem a “conversa” dos dois – o menino retoma os amplos quase círculos.

O avô está encantado com o menino. Aproxima-se. Abraça-o. Traz para o menino o seu modo de brincar com o corpo do outro. O menino interage, copia o avô. Faz coisas com ele, como ele faz. Abraçam um ao outro.

E o menino volta a correr, em trajetórias amplas, quase círculos. Uma necessidade, no mínimo. Depois o avô some para um lado. Os pais reaparecem, buscando o menino. A família vai embora toda junto.

O brincar é isso: as pessoas o consideram algo próximo de um desperdício de energias. Não entendem que é um modo de habitar o mundo, um artesanato do movimento.