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Uma geração de analfabetos motores

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Imagem do filme Wall-e: as pessoas já não se movem mais

 

A ausência de contato físico continua a se impor entre pais e filhos. E assim vão surgindo seres menos afetivos, menos livres e sem desejo pelo movimento. Ou, então, desorientados nos seus espaços de ação. Tenho observado que muitos pais, ao adquirirem a cadeira para transportar bebês em veículos, aproveitam para levá-los também de um lado a outro nos passeios. Vi um bebê sendo levado assim, flutuando no espaço, olhando aquele imenso céu azul. Lembrei-me, logo, do planeta Wall-e, o desenho da Pixar-Disney, do robozinho que volta à estação espacial, onde estão todos os humanos, e os vê entregues a uma letargia e total falta de movimento.

A cadeirinha é uma exigência da lei, a fim de dar segurança aos bebês e crianças pequenas. Além disso, é prática. Porém, não podemos esquecer que o mais importante é o toque. Diferente disso é quando levamos a criança coladinha no corpo, com um suporte, numa longa caminhada ou passeio. Mas deixá-la, de início, sem contato corporal, é um grande equívoco.  

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Há vida fora do brinquedo industrializado e dos shopping centers

 

Os dois meninos estão com onze anos. A moda é uma arma de brinquedo, que atira projéteis de plástico. O meu filho tem uma dessas, pequena, tipo revólver. Sim, acabei comprando para ele, de tanto insistir. Mas não só por isso: lembrei-me da alegria que me tomou quando ganhei de presente os meus primeiros revólveres de cowboi. E também das brincadeiras de assalto ao trem pagador em cima dos murinhos de nossas casas, nos anos 60.  E me lembrei ainda  dessa discussão meio estéril sobre a possibilidade ou não desses brinquedos induzirem a violência. Por tudo isso, pensei: vamos acompanhar isso… Ele queria uma arma enorme, mas aí eu achei que era muito exagero.

E então, ocorre que o amigo de meu filho veio passar o fim de semana com a gente. E trouxe junto uma enorme arma de brinquedo, uma imitação dessas que aparecem nos filmes e jogos eletrônicos. Um terror de arma! Aliás, uma estupidez. Não pelos motivos que estão por aí em circulação, mas simplesmente porque é um trambolho que impede qualquer imaginação. Meu diagnóstico é simples e direto, avesso ao cunho moralista: o brinquedo industrializado brinca sozinho!  Além disso, a arma de brinquedo era de um exagero só: impossível andar normalmente nas ruas sem chamar a atenção. Mas a coisa não se encerra aí: há toda uma cultura do tédio que é preciso driblar. E é disso que eu pretendo falar.  

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Geral infância

Jorge Mautner: o lúdico, a poesia, a irreverência e a infância

 

Jorge Mautner, músico, pensador e profeta do Kaos, um dos inspiradores do Tropicalismo, parceiro de Gil e Caetano. Quem já não ouviu falar desse artista, ligado em Nietzsche, capaz de passar do samba da velha guarda à visão existenciante, ao rock e à tragicidade alegre e dionisíaca? Autor de letras e músicas geniais, como Maracatu Atômico, Lágrimas Negras, entre tantas outras. Porém, um lado pouco percebido desse poeta é aquele que traz imagens e memórias da infância, assim como uma visão lúdica da vida e das coisas.

Você já se tocou nisso: filosofia, poesia e irreverência com cara de gibi?   

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Lembranças de um recreacionista (III): entrevista ao Jornal do Balão

Le ballon rouge

 

“O espaço era um verdadeiro quintal. Sim, havia um pé de goiaba, um tanque de areia, terra e grama, um pé de jabuticaba, uma mesa enorme ao fundo, um grande pneu de trator deitado, pequenos pneus sobrando aqui e ali. Tinha escorregador e uma daquelas estruturas metálicas onde se pode subir etc. Não se tratava de organizar as crianças e de lhes propor uma atividade. Elas já estavam em ação, num processo auto-organizado. Difícil perceber e entender isso, pois aprendemos equivocadamente a perceber o brincar espontâneo e não dirigido como algo desorganizado”.

Essa a atmosfera do recreio, no Balão Vermelho, nos anos 70.  O texto acima é o trecho de uma entrevista que dei ao Jornal do Balão (Escola Balão Vermelho, Belo Horizonte, junho de 2011). O pessoal do Balão deu um título muito carinhoso: “Lembranças de um professor inesquecível”. Como não ficar lisonjeado?

A série de postagens intituladas Lembranças de um recreacionista mostra aspetos desse projeto, voltado a uma utilização criativa dos espaços e tempos do recreio. Um projeto no qual eu tive a oportunidade de participar e que foi minha iniciação como professor de arte. Conto um pouco do que aprendi ali com as diretoras Ieda, Bete e Leninha, com outras professoras e, principalmente, com as crianças.

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O recreio e a culpabilização do movimento

Num artigo intitulado “Recreio e educação” (Folha de São Paulo, 18.10.2011), Rosely Saião comentou o castigo sofrido por uma aluna, por descer as escadas correndo. A menina, de dez anos, foi obrigada a escrever 500 vezes a frase “Não devo correr”, além de ter ficado seis dias sem recreio. A psicóloga e ensaísta faz uma análise do recreio, que é por natureza dado à movimentação intensa das crianças, mostrando em seguida que a punição não é de modo algum educativa. E mais do que isso: revela o fracasso da missão pedagógica.

O que seria um “bom recreio”? Rosely responde: “digo que se um velho ou um bebê for colocado no meio do espaço e sobreviver sem escoriações é porque as crianças fazem um bom intervalo”.  A autora observa que “a criança tem energia e precisa gastá-la”. Contudo, o senso comum diz que, para isso, elas precisam “correr, gritar, pular”.  Rosely mostra que não é bem assim, pois a criança acaba por ficar mais agitada. Haveria outros modos de liberar essa energia, mas “perdemos a mão na hora de ensinar”. Não seria pela proibição, ou pela mera verbalização que se conseguiria educar o movimento da criança. Para a ensaísta, deveríamos ser mais precisos. E que deveríamos ter, na hora do recreio, “mais educadores por perto, não apenas inspetores”. E conclui dizendo que “as escolas precisam reconhecer que a hora do recreio é uma excelente oportunidade educativa e, como tal, exige planejamento, objetivos, estratégias e um ambiente organizado e minuciosamente preparado para o que pode acontecer”. 

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O bullying professor-aluno e a transferência de autoridade

Crise na transferência de autoridade?

Ouço educadores reclamarem da ausência de autoridade na educação. Há uma percepção reinante de que podem ser processados juridicamente por qualquer coisa, sem falar nas agressões praticadas por alunos. Volta e meia recebo mensagens eletrônicas com prognósticos sombrios sobre a situação atual. E o que me preocupa é que muitas dessas análises têm se mostrado extremamente conservadoras: ausência de valores, inversão das relações de poder etc. Os pais são caracterizados como incapazes de realizarem a transferência de autoridade para a instituição escolar. Noutra hipótese, talvez não sejam eles mesmos exemplos de autoridade. Vivemos, segundo essa opinião,  numa época de total anomia.

O raciocínio me parece devedor de uma polaridade: do poder do professor ao poder do aluno. Algo foi retirado do primeiro e repassado ao segundo, daí os males de nossa época. O que me parece uma grande simplificação. Pois, como é entendido que a polarização tende para este último, tudo o mais se perderia: o rigor do conhecimento, as normas e tradições, o respeito, a consideração pelos superiores etc.

Por essas vias, acabamos por ignorar os agenciamentos de poder, da qual não podem ser separadas nossas práticas existenciais e pedagógicas. E de sobra, passa-se por cima das mudanças  sociais que lhe são correspondentes. Além disso, camufla-se o bullying professor-aluno, assim como o que ocorre na relação instituição-aluno, que não podem ser ignorados, mesmo quando não se mostram por meio de agressões físicas e morais.

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O que acontece quando se brinca?

 

Para além dos dualismos

Temos a infância e o brincar. Não quer isso dizer que as duas instâncias sejam uma só coisa. Pois a experiência do brincar ocorre também, em maior ou menor grau, nas sociedades adultas.  Retenhamos, no entanto, a imagem que nos parece, por vezes, insondável: a de uma criança brincando. O que acontece? O que se passa?

Acredito que essa é uma pergunta fundamental. As pessoas envolvidas na educação infantil veriam modificar seu próprio chão e, consequentemente o horizonte de sentido no qual atuam, caso se colocassem a pergunta: o que está acontecendo ali, no ato de brincar? Estamos nos referindo às ações não dirigidas, em que as crianças agem movidas pelo interesse intrínseco à própria atividade.

Voltemos no tempo, a uma época em que predominavam os brinquedos feitos pelas próprias crianças. Não veja nisso nenhum saudosismo ou desvalorização das situações urbanas, da entrada das tecnologias etc. Foram os refugos das máquinas, ou os maquinismos inventados, que constituíram muitos brinquedos. Separemos, no entanto, os brinquedos fabricados por adultos e destinados às crianças ou não (os soldadinhos de chumbo) dos brinquedos que as próprias crianças criam a partir de interações entre si e com o entorno.

Então, voltemos ao brinquedo fabricado pelas próprias crianças. E para dar um exemplo, lá está um menino, nos anos cinquenta, puxando por um fio de barbante uma lata de doce vazia e retangular, agora carregada de terra. O que está acontecendo?  

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A criança pequena é egocêntrica? (1)

Imagem: Arquera

Durante muito tempo acreditei na ideia de um egocentrismo infantil. Como fui um leitor de Jean Piaget e o construtivismo havia se tornado uma linha determinante e também hegemônica em educação, tive essa ideia por princípio inabalável. Um dia, quando dava uma conferência sobre teatro e educação, trabalhei com a noção piagetiana de que o símbolo não seria descentrado – daí a noção de egocentrismo infantil. Uma educadora me questionou: mas a criança quando brinca – e ela se referia aos jogos simbólico-corporais infantis – envolve-se sim com ou outro.

Foi um choque muito importante para mim. E que fez descarrilar toda uma linha de pensamento em teatro e educação. Mais tarde, sofri outras transformações, passando a operar com outros planos de criação. Não mais a noção de um progresso, mas sim de uma volta ao que a criança pequena traz.

A teoria piagetiana mostra que a criança pequena não socializa o símbolo, daí a ideia que não é passível de uma comunicação teatral. Algumas práticas de jogos teatrais têm por base, para dar um exemplo, essa linha evolutiva: do simbolismo para o signo, do mais motivado para o mais socializado, mas preservando-se elementos motivados no final da linha. Lógico, pois se trata de arte. No entanto, temos aí toda uma linearidade de extração cognitiva, no caso da psicopedagogia. E toda uma via de submissão à representação, no caso do teatro.

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Toy Story 3 ou o dia em que deixamos os brinquedos

Imagem de Kyle May

Há um dia em que paramos de brincar. Um dia em que guardamos nossos brinquedos. Não que isso aconteça necessariamente de uma só vez, porém, mesmo assim abandonamos, de um jeito ou de outro, nossas mais belas aventuras e partimos para um mundo opaco.

Algumas vezes, um sentimento de vergonha parece marcar essas passagens. Sentimos o olhar de um adulto, ou de colegas mais velhos, criticando ou desfazendo esse interstício de subjetivação e objetivação que é o brincar. Então, sentimo-nos sem chão. O que estamos fazendo, ainda aqui? Não é hora de parar de brincar? O desencantamento do mundo se repete na vida de cada um.

É com um sentimento estranho que olhamos para nossos antigos brinquedos. Para essa terra de onde fomos exilados para sempre. Toy Story 3, o filme da Pixar, mostra esse momento, conduz o seu final para esse fim da infância. Meu filho menor, por volta dos seus 10 anos, achou o filme muito triste. Ele ainda brinca.

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Lembranças de um recreacionista II

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Imagem de Gonzáles-Alba

 

Num outro texto abordei a Função do brincar na educação infantil. Volto às lembranças do recreacionista que fui. Desta vez, no entanto, quero cuidar de outra questão: a diretividade ou não-diretividade da ação. Como se colocar diante do universo lúdico da criança? Isso depende, naturalmente, do contexto. No caso, estamos abordando a função do educador no recreio escolar.

Como recreacionista, vivi experiências que me trazem, ainda hoje, insights muito interessantes. Antes de tudo, é preciso voltar ao lugar das lembranças. Como dizia no outro texto, tudo começou mesmo na Escola Balão Vermelho. Estávamos no início da década de 1970, colhendo os efeitos do recrudescimento da ditadura militar, das perseguições políticas, num clima de medo. E no meio disso tudo, três educadoras, Bete Lobato, Ieda Brito e Maria Helena Latalisa,  resolveram abrir um espaço para o porvir: uma escola para a educação da sensibilidade, para a busca livre do conhecimento e do estabelecimento de novas relações entre as pessoas. E como disse antes, começavam por mudar o conceito de recreio: não mais o oposto ao trabalho, mas o que lhe é complementar  e o resignifica em última instância – o brincar como o trabalho da criança, exploratório e sensível, rizomático e aberto.

Nos primeiros momentos, eu adentrava naquele mundo das brincadeiras infantis. As crianças tinham um quintal, com areia, terra, árvores etc. Não havia o medo de se sujar, como observo em algumas escolas hoje. Aliás, outro dia vi um tanquinho de areia numa escola que ficava a altura das mãos das crianças, para que elas não precisassem entrar nele – e nem podiam, pois era apenas uma espécie de canteiro. Ou seja, envolver-se com o mundo sim, mas apenas com a ponta dos dedos…

Era uma agitação molecular. Quando digo isso, quero dizer com base em Gilles Deleuze que as crianças vivenciam encontros não previsíveis nos espaços do recreio. Acho que na maioria das escolas, hoje, os espaços são excessivamente delimitados – isto é, delimitadores. Molares, para pensar de novo com Deleuze. As crianças já encontram brinquedos e formas de brincar moldadas, formatadas: um tanque de areia, brinquedos etc. Não que eles não possam existir, mas não precisam dominar a paisagem. No caso do Balão Vermelho, nós tínhamos à nossa disposição um quintal: aquilo que o nosso blog amigo, o Quintarola, tanto valoriza.

Qual a função do recreio na educação infantil? Naquela demanda do Balão Vermelho nos idos 70 estava uma ideia muito importante: espaço potencial de educação, de atividades de conhecimento, porém num modo não diretivo. Mais do que isso: com os materiais que a criança encontra a mão para manipular e se envolver de modo não programado. Misto de meio natural (terra, árvore, areia, espaços, pedrinhas, folhas, gravetos…) e produzido (espaços, brinquedos de arquitetura etc.).  E então entramos na questão: eu começava entrando num campo de agitação molecular, onde as coisas todas (toda sorte de brincadeiras e de encontros não planejados) já estavam acontecendo.

Que não se entenda a não-diretividade como espontaneísmo etc. E aqui reside a maior causa dos enganos pedagógicos: deixar como estar para ver como é que fica. Os educadores, nessa hora, estão tomando café, conversando, distraindo-se etc. Nós, recreacionistas, sabemos que essa é a hora.

Difícil ver e entender o que acontece nesse campo de agitação molecular. No outro texto chamo a atenção para os processos metaestáveis, sistemas auto-organizados, emergentes etc.  Os educadores deveriam ser educados a aprenderem a ler o ambiente flutuante e móvel do brincar não dirigido. E descobrir ali, também, suas repetições, suas linhas molares, segmentadas, pois que elas existem ali.

Mas eu não tive a oportunidade de olhar de fora o brincar das crianças. Fui logo caindo naquele mundo. Caíram meus modelos, minhas máscaras, minhas defesas. E entrei em contato com a vida pulsante do brincar nos quintais.

O que eu fazia? Eu me envolvia diretamente com as atividades das crianças. E eu me descobria brincando com elas. Não havia método, eu estava descobrindo as coisas… Maria Helena Latalisa, a Leninha, logo me deu um “presente” que me acompanharia por toda a vida em todas as minhas outras atividades: um diário de campo.

Aqui, também, o primeiro passo para adentrar num processo não diretivo e que evita, contudo, de cair no buraco do espontaneísmo. O registro das atividades, das perguntas, das questões… No emaranhado das experiências você puxa uma linha, acompanha seu desenvolvimento, sua direção… E então pode voltar, no dia seguinte, com outro modo de entrar naquele mundo.

Podemos perseguir, assim, outro modo de nos entendermos como recreacionistas: nem não diretivos e nem diretivos – em processo. Guardiões do processo, deveria ser o nome da profissão de quem trabalha com a recreação  na educação infantil. Muito diferente do recreacionista que tem por função apenas oferecer objetos (bolas, cordas para pular, jogos etc.) para as crianças. Ou que vive somente de “controlar” o momento do brincar.

O momento em que as crianças estão livres de atividades dirigidas, voltadas para o brincar somente, é uma cartografia de espaços e tempos. Uma configuração experimental, como aborda Gerda Verden-Zöller.

Voltando às anotações, através delas  você descobre um meio de realizar uma intervenção não intervencionista, se me explico bem.  Quero dizer que você toma posse de uma imanência e, a partir dela, interage com o meio, seus impulsos e o outro. Quanto aos cadernos, eles tornam-se uma criação sua, servindo a múltiplos fins. Os cadernos de campo foram meus grandes aliados. E continuam sendo. Em toda e qualquer aula ou oficina de teatro, ou mesmo ensaio, meus diários estão ali, rabiscando a pele das coisas, fazendo mapa.

Depois, passada a primeira fase – a do espanto na ação – comecei a trabalhar de modo cada vez mais diretivo. Passei do recreacionismo para a oficina de arte, no caso, de teatro. Mas, a cada vez que aprofundo mais nesse caminho diretivo, redescubro o primeiro dia, aquele em que cheguei num quintal e brinquei com crianças sem qualquer direção predeterminada. Apenas seguindo a intuição e as linhas de errância do brincar.

Uma volta mais diretiva exige, a toda hora, uma revolta menos dirigida.

Referências –

Imagem de Gonzales-Alba: Muro com manchas, rachaduras e grafia