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O brincar e a educação infantil – I

Kandinsky big

A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.

Imagem: Kandinsky

Por que o brincar?

O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.

A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.

Esse modo de habitar o mundo é uma tekné que o brincar aciona. E se o brincar nos ensina isso, essa técnica de entrar no mundo, que é outro modo de dizer conhecer, como falar, ainda, de uma aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão?

Pode parecer que se está aderindo a uma coisa meio irresponsável. Seria como dizer que qualquer coisa pode, nada precisa ser feito e então “deixemos como está para ver como é que fica”. Não é, definitivamente, através de um espontaneísmo que se entende o brincar como um plano de experimentação. Ao contrário, isso envolve dedicação e pesquisa.

Então, convido você, leitor/leitora a dar uma volta, chamando o pensamento para caminhar…

Se acreditarmos que a educação infantil é somente uma questão de aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão, o brincar será pensado, de um lado, como um exedente de energia a ser gasta, do outro, como um instrumento ou veículo de aprendizagem. Antes disso, o brincar é um plano de experimentação.

Um programa para tornar igual ou para acolher a diferença?

Toda sociedade, todo organismo quer se reproduzir. É o desejo imenso de tornar igual e vencer a morte. Porém, isso gera problemas, alguns até mesmo dados à perseguição ou eliminação da diferença. Para tanto, basta lembrar um pouco as intolerâncias, discriminações etc. A educação deve decidir qual a sua tarefa: a de tornar igual ou a de abrir espaço para a diferença. A escola, nos mostra Foucault, produz sempre o sucesso e o fracasso. A “criança problema”, aquela que foge à sua regra de sucesso previamente traçada é seu paradigma.

A aprendizagem, como os sistemas pedagógicos têm apresentado, é um programa feito para tornar igual. Gil Amâncio, brincante e artista, contou-me uma história (não importa que seja comprovada ou não): no antigo Egito os homens carregavam as pedras nas costas, enquanto as crianças brincavam de carregar pedras fazendo-as rolarem por galhos de árvores… As crianças estavam à frente dos adultos, que não podiam olhar para o que elas faziam. E isso porque têm a necessidade de tornar os pequenos iguais aos adultos. Todos nós sabemos a que preço nos tornamos adultos e iguais.

A questão, portanto, passa a ser: a escola consegue lidar com a diferença?

Experimentação é uma questão de tomar o real como sendo um lugar de não-modelos, de engendramento de singularidades, de não comparação. Quando as crianças correm pelos espaços, toda sorte de desvio, colisão e invenção ocorrem. Nesse plano, elas entram em interação com o mundo. Ninguém sabe o que vai acotecer. Nem as próprias crianças.

A pesquisadora em Pedagogia da Infância, Eloisa Acires Candal Rocha aponta no artigo A pedagogia e a educação infantil, novos parâmetros o fortalecimento da relação com a família na gestão e no projeto pedagógico, bem como a ênfase nos âmbitos de formação relacionados à expressão e às artes. O brincar é uma ponte entre esses mundos: da arte, dos cuidados familiares e pedagógicos com a infância, dos afetos e percepções corporais.

Cultura lúdica

É difícil para os adultos, em condições normais, entender as potências da cultura lúdica da infância. Não sabem lidar com as energias desencadeadas. Porém, aparece, aqui, a pergunta crucial: os educadores deveriam se envolver com as brincadeiras infantis?

Quem disse que educadores/educadoras, por não serem crianças, não podem brincar com elas? Por que se satisfazem, muitas vezes, em vigiar os espaços livres do brincar? Por que cumprem esse papel que a ordem econômica reserva para os que lidam com a infância?

No entanto, quando aderimos à produtividade a todo custo, modelo vingente para muito do que se pensa para a educação infantil, esquecemos que a própria sociedade se modifica sem parar. A adesão aos parâmetros de uma sociedade de acumulação, apesar de sempre justificada como necessidade do “real”, não deixa de ser um modo de viver a vida dos afetos, de organização da libido. E essa mesma aderência, quando reporta aos hábitos que tal sociedade cristaliza, torna suas ferramentas para a produção da vida (e de suas paisagens) inadequadas para o próximo momento.

E então, para que tipo de sociedade estamos querendo preparar nossas crianças? Muito do que já se ensinou deverá ser necessariamente desaprendido. E então, educador, como ficamos?

Brincar como um programa  de experimentação

As crianças pequenas, dentro do programa de educação infantil voltado para o progresso a todo custo, não estão podendo dispor de sua tekné – do brincar como um modo de entrar no mundo – que é realmente e, de modo concreto, um instrumento de conhecimento. Difícil para nós é percebermos a riqueza desse conhecimento. Nisso, infelizmente, não fomos treinados. Mas nunca é tarde. Digo sempre: é preciso aprender com as crianças! Então, educador, consegue me explicar a tekné de uma criança de dois anos?

Se o brincar é da vida, ele possui um programa implícito que precisamos, do ponto de vista pedagógico, torná-lo explícito. Isso não quer dizer que é fazer do brincar um instrumento pedagógico, acrescentando-lhe uma finalidade extrínseca. Pelo contrário, é perceber seu interesse/desejo.

O brincar, como experimentação, inclui conhecimentos aprendidos. Mas os supõe, sempre, para serem desaprendidos. A experimentação é nômade: põe as coisas em movimento. Não se pode prever de antemão o resultado, exercitando-se antes um saber que se inventa a si próprio no ato de caminhar.

O brincar deveria ser tomado pelos programas de educação infantil como um modo de organização da experiência que contribui para a instauração de rotinas criativas.

Para tanto, é preciso adotar o ponto de vista de que o brincar não se encerra em modelos de experiência. Quando as crianças estão brincando, elas instauram um plano de vida que diverge de qualquer modelo. Nós, ao contrário, é que empurramos tais vivências para os contornos duros e molares. O brincar é uma agitação molecular. Do ponto de vista da libido, ele é polimorfo. Do ponto de vista do conhecimento, ele é pura curiosidade e invenção.

Mesmo se a criança repete nas suas brincadeiras, por exemplo, quando sempre procura num mesmo lugar a outra que se esconde – isso não é conservadorismo. A criança, mais do que qualquer um, sabe que é preciso um círculo de repetição do desejo. Mas, no centro apaziguador disso, ressaltam Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs, sempre há motivos e contrapontos. Você já pensou que a trajetória de uma criança no espaço pode ser música? Por que os educadores não são treinados na ampliação da sensibilidade em vez de serem apenas os que vigiam e tomam conta? Em que medida eles se permitem serem modificados por um olhar-criança?

Quando numa rotina escolar as crianças pequenas vão para o pátio ou para outro lugar em fila, que tipo de mundo ou paisagem isso produz? A de uma ordem que resiste à agitação caótica da vida. Só pode fracassar, obviamente. Ao contrário disso, se as crianças vão caminhando livremente, elas colidem umas com as outras, inventam desvios, linhas de errância, descobrem mundos e produzem paisagens. Ahh… isso dá muito trabalho para aqueles que lidam com a educação infantil. Não basta vigiar. Tem que caminhar junto.

As rotinas escolares são modos de repetição que geram um chão para as crianças. A questão reside em pensá-las como meios de incorporação de um pouco de agitação molecular em nossas vidas. Isso supõe encontrar as motivações intrínsecas às próprias atividades. As crianças estão, nessa fase, explorando o mundo de um modo múltiplo, conectivo, molecular, sensível e não hierárquico. Cabe à educação infantil favorecer essa busca de conhecimento inventivo e criador. O brincar mostra os caminhos.

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

2 respostas em “O brincar e a educação infantil – I”

Achei maravilhoso tudo o que foi dito. É sem dúvida um momento de reflexão e mudanças na educação, principalmente a infantil.
Parabéns!!!
Por favor, gostaria de receber dicas de livros sobre a importância do brincar na educação infantil, suas contribuições e beneficios para a infancia e para a formação de adultos responsaveis, autônomos, polivalentes, críticos…
Desde ja agradeço.

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