Tive o privilégio de viver o teatro antes de conhecer o teatro. Como foi isso? Início dos anos 50, no nordeste de Minas, Teófilo Otoni. A televisão ainda não havia chegado lá. Mas já tinha ido ao cinema.
Então, isso já não era uma influência cultural? Sim, de qualquer jeito. Mas tal matéria fílmica era muito diferente dos comportamentos representados diante do outro. Era uma janela tremulante e mágica. Vinicius de Moraes falava que a imagem projetada é como aquela pequena chama no meio da escuridão: um fascínio ancestral.
E o teatro? Eu nunca havia visto. Então, eu brincava de quê? E como se pode dizer que toda criança pequena faz teatro sem conhecer teatro? Meu avô fez para mim uma espada de madeira pequena. Vivi o tempo da feitura, do imaginário forjado ali na minha frente. Uma duração. E tive brinquedos comprados também. Revólveres que me encantavam, um ao lado do outro. Sim, os cowboys, eu os vivia intensamente. E uma espingarda de pressão com uma rolha e um barbante na ponta. Mas nada disso era mais forte que outra coisa: o ato de brincar como poiesis. Pois o brincar antecede o brinquedo: é maior do que ele.
Venho sempre defendendo a idéia de que a educação infantil deve se pautar pela cultura do brincar. Porém, como se não bastassem as dificuldades conceituais e práticas encontradas em muitas escolas, com uma carga cada vez maior de conteúdos formais, significando o encolhimento da infância, de seus espaços e tempos, deparamo-nos, agora, com o fato de as crianças de seis anos serem incluídas, sem qualquer preparo de profissionais e das escolas, no ensino fundamental. Pelo menos, é o que a realidade tem mostrado.
Como não recair na nostalgia quando falamos de uma cultura lúdica da infância? O movimento retroage. E nos encontramos, assim, no território seguro de uma eterna repetição.
Ir além da nostalgia é a tarefa cotidiana daqueles e daquelas que têm a ludicidade da criança por tema e paixão. Em busca de algo que a lembrança não consegue abarcar mas que é pura memória e jogo vivo de acasos e afetos.
Sempre digo que a infância tem uma altivez inexprimível. E uma dor e alegria que a acompanham. A criança está submetida ao adulto, ao que ele impõe ou antepõe para a configuração do mundo. Mas a criança, mesmo quando sofre a ação adulta, tem um sentido de sobrevivência no futuro. O adulto está cercado e por isso quer da criança sua adesão moral. Ocorre que a criança habita frestas e hesita entre ações úteis. Nisso reside seu poder e sua superioridade.
Por um desvio suave do dia, passei a pé pela rua onde morei desde a infância, quando me mudei para Belo Horizonte no início dos anos 60. Parei na esquina e fiquei um momento em silêncio. Sempre digo que o silêncio é uma estratégia de escuta, de recepção, de emergência de sensações outras. Assim, vieram coisas. Algumas lembranças logo apareceram. Emoções fortes surgiram.
Permaneci quieto.
A minha árvore ainda está lá. Menos a casa, que virou, com mais duas outras, um enorme prédio.
E vieram também lembranças puras. Como explicá-las? Elas não figuram. Mantém em suspenso qualquer atualização: estão lá, podem advir, mas permanecem ausentes. Armazém de coisas ainda não-coisas. São essas as forças que nos garantem em momentos difíceis, principalmente quando temos de nos inventar mais uma vez. Assim vejo a infância também: não o que se encaixa numa classificação das imagens registradas, mas aquilo que se abre para o futuro.
Num outro texto abordei a Função do brincar na educação infantil. Volto às lembranças do recreacionista que fui. Desta vez, no entanto, quero cuidar de outra questão: a diretividade ou não-diretividade da ação. Como se colocar diante do universo lúdico da criança? Isso depende, naturalmente, do contexto. No caso, estamos abordando a função do educador no recreio escolar.
Como recreacionista, vivi experiências que me trazem, ainda hoje, insightsmuito interessantes. Antes de tudo, é preciso voltar ao lugar das lembranças. Como dizia no outro texto, tudo começou mesmo na Escola Balão Vermelho. Estávamos no início da década de 1970, colhendo os efeitos do recrudescimento da ditadura militar, das perseguições políticas, num clima de medo. E no meio disso tudo, três educadoras, Bete Lobato, Ieda Brito e Maria Helena Latalisa, resolveram abrir um espaço para o porvir: uma escola para a educação da sensibilidade, para a busca livre do conhecimento e do estabelecimento de novas relações entre as pessoas. E como disse antes, começavam por mudar o conceito de recreio: não mais o oposto ao trabalho, mas o que lhe é complementar e o resignifica em última instância – o brincar como o trabalho da criança, exploratório e sensível, rizomático e aberto.
Nos primeiros momentos, eu adentrava naquele mundo das brincadeiras infantis. As crianças tinham um quintal, com areia, terra, árvores etc. Não havia o medo de se sujar, como observo em algumas escolas hoje. Aliás, outro dia vi um tanquinho de areia numa escola que ficava a altura das mãos das crianças, para que elas não precisassem entrar nele – e nem podiam, pois era apenas uma espécie de canteiro. Ou seja, envolver-se com o mundo sim, mas apenas com a ponta dos dedos…
Era uma agitação molecular. Quando digo isso, quero dizer com base em Gilles Deleuze que as crianças vivenciam encontros não previsíveis nos espaços do recreio. Acho que na maioria das escolas, hoje, os espaços são excessivamente delimitados – isto é, delimitadores. Molares, para pensar de novo com Deleuze. As crianças já encontram brinquedos e formas de brincar moldadas, formatadas: um tanque de areia, brinquedos etc. Não que eles não possam existir, mas não precisam dominar a paisagem. No caso do Balão Vermelho, nós tínhamos à nossa disposição um quintal: aquilo que o nosso blog amigo, o Quintarola, tanto valoriza.
Qual a função do recreio na educação infantil? Naquela demanda do Balão Vermelho nos idos 70 estava uma ideia muito importante: espaço potencial de educação, de atividades de conhecimento, porém num modo não diretivo. Mais do que isso: com os materiais que a criança encontra a mão para manipular e se envolver de modo não programado. Misto de meio natural (terra, árvore, areia, espaços, pedrinhas, folhas, gravetos…) e produzido (espaços, brinquedos de arquitetura etc.). E então entramos na questão: eu começava entrando num campo de agitação molecular, onde as coisas todas (toda sorte de brincadeiras e de encontros não planejados) já estavam acontecendo.
Que não se entenda a não-diretividade como espontaneísmo etc. E aqui reside a maior causa dos enganos pedagógicos: deixar como estar para ver como é que fica. Os educadores, nessa hora, estão tomando café, conversando, distraindo-se etc. Nós, recreacionistas, sabemos que essa é a hora.
Difícil ver e entender o que acontece nesse campo de agitação molecular. No outro texto chamo a atenção para os processos metaestáveis, sistemas auto-organizados, emergentes etc. Os educadores deveriam ser educados a aprenderem a ler o ambiente flutuante e móvel do brincar não dirigido. E descobrir ali, também, suas repetições, suas linhas molares, segmentadas, pois que elas existem ali.
Mas eu não tive a oportunidade de olhar de fora o brincar das crianças. Fui logo caindo naquele mundo. Caíram meus modelos, minhas máscaras, minhas defesas. E entrei em contato com a vida pulsante do brincar nos quintais.
O que eu fazia? Eu me envolvia diretamente com as atividades das crianças. E eu me descobria brincando com elas. Não havia método, eu estava descobrindo as coisas… Maria Helena Latalisa, a Leninha, logo me deu um “presente” que me acompanharia por toda a vida em todas as minhas outras atividades: um diário de campo.
Aqui, também, o primeiro passo para adentrar num processo não diretivo e que evita, contudo, de cair no buraco do espontaneísmo. O registro das atividades, das perguntas, das questões… No emaranhado das experiências você puxa uma linha, acompanha seu desenvolvimento, sua direção… E então pode voltar, no dia seguinte, com outro modo de entrar naquele mundo.
Podemos perseguir, assim, outro modo de nos entendermos como recreacionistas: nem não diretivos e nem diretivos – em processo. Guardiões do processo, deveria ser o nome da profissão de quem trabalha com a recreação na educação infantil. Muito diferente do recreacionista que tem por função apenas oferecer objetos (bolas, cordas para pular, jogos etc.) para as crianças. Ou que vive somente de “controlar” o momento do brincar.
O momento em que as crianças estão livres de atividades dirigidas, voltadas para o brincar somente, é uma cartografia de espaços e tempos. Uma configuração experimental, como aborda Gerda Verden-Zöller.
Voltando às anotações, através delas você descobre um meio de realizar uma intervenção não intervencionista, se me explico bem. Quero dizer que você toma posse de uma imanência e, a partir dela, interage com o meio, seus impulsos e o outro. Quanto aos cadernos, eles tornam-se uma criação sua, servindo a múltiplos fins. Os cadernos de campo foram meus grandes aliados. E continuam sendo. Em toda e qualquer aula ou oficina de teatro, ou mesmo ensaio, meus diários estão ali, rabiscando a pele das coisas, fazendo mapa.
Depois, passada a primeira fase – a do espanto na ação – comecei a trabalhar de modo cada vez mais diretivo. Passei do recreacionismo para a oficina de arte, no caso, de teatro. Mas, a cada vez que aprofundo mais nesse caminho diretivo, redescubro o primeiro dia, aquele em que cheguei num quintal e brinquei com crianças sem qualquer direção predeterminada. Apenas seguindo a intuição e as linhas de errância do brincar.
Uma volta mais diretiva exige, a toda hora, uma revolta menos dirigida.
Era noite e levamos as crianças para brincar na rua. São essas as condições atuais: é necessário que os pais estejam por perto. Quanto mais à noite!
Outro dia, o jornal dizia que no Bairro Vera Cruz, de Belo Horizonte, as crianças brincam nas ruas, as pessoas conversam nas calçadas e a violência é quase uma desconhecida naquele pedaço do mundo. Não é mais assim na maioria dos lugares.
Éramos dois pais, uma menina, dois meninos e uma noite de um resto de verão.
As férias vão se encerrando e começam as preocupações de todos os pais: onde matricular crianças na faixa de até seis anos de idade.Volto-me sobre as questões apresentadas numa postagem primeira sobre as relações entre o brincar e a educação infantil: o significado dos tempos e dos espaços para o brincar, o currículo escolar, a nossa visão sobre o desenvolvimento das crianças etc.
Uma existência se abre quando levo meu filho mais novo de volta para sua casa. Andar ao lado de uma criança é sempre uma coisa muito especial. Mas naquele dia foi outra coisa: eu não andava mais em direção à sua casa com o objetivo de levá-lo tão somente, mas adentrava um mundo.
O brincar como um platô. Antes de explicitar qualquer referência sobre a definição do conceito fabricado por Deleuze e Guattari, quero dizer como fui afetado (e modificado) mais uma vez pela invasão doce e bárbara da cultura lúdica da infância. E assim falo do platô.
Os dois meninos brincavam. De longe eu ouvia as vozes de excitação e, posso dizer com Oswald de Andrade, da alegria que é a “prova dos nove”. Estava navegando na internet, mas imerso na luminosidade sonora de uma tarde tomada por vozes de crianças.