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Walter Benjamin: o brincar e o rosto do mundo

“As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Nelas estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.”

Walter Benjamin, in Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Duas Cidades/Editora, 2002

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Teatro antes do teatro: o brincar e a cultura das ruas

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Tive o privilégio de viver o teatro antes de conhecer o teatro. Como foi isso? Início dos anos 50, no nordeste de Minas, Teófilo Otoni. A televisão ainda não havia chegado lá. Mas já tinha ido ao cinema.

Então, isso já não era uma influência cultural? Sim, de qualquer jeito.  Mas tal matéria fílmica era muito diferente dos comportamentos representados diante do outro. Era uma janela tremulante e mágica. Vinicius de Moraes falava que a imagem projetada é como aquela pequena chama no meio da escuridão: um fascínio ancestral.

E o teatro? Eu nunca havia visto. Então, eu brincava de quê? E como se pode dizer que toda criança pequena faz teatro sem conhecer teatro? Meu avô fez para mim uma espada de madeira pequena. Vivi o tempo da feitura, do imaginário forjado ali na minha frente. Uma duração. E tive brinquedos comprados também. Revólveres que me encantavam, um ao lado do outro. Sim, os cowboys, eu os vivia intensamente. E uma espingarda de pressão com uma rolha e um barbante na ponta. Mas nada disso era  mais forte que outra coisa: o ato de brincar como poiesis. Pois o brincar antecede o brinquedo: é maior do que ele. 

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O menino brinca sozinho: linhas de errância

“…[what] we are doing is living, and that we are not moving toward a goal, but are, so to sepeak, at the goal constantly and change with it, and the art, if is going to do anything useful, should open our eys to this fact”. John Cage

(tradução livre: ” [o que] nós estamos fazendo é vivo, e nós não estamos nos movendo em direção a um objetivo, mas estamos, por assim dizer, no objetivo mesmo e nos modificando com ele, e a rte, se ela tem alguma utilidade, deveria ser de abrir nossos olhos para este fato”).

Referências:

John Cage foi um músico e performer que exercitou e difundiu a experimentação artística, influenciando não só a música mas todo o campo da cena contemporânea (dança, teatro, performance art).
Imagem: LCG – Luís Felipe brincando nas areias do Rio São Francisco, em Pirapora-MG.

O menino é o ancestral 2

Sigo o meu amigo que segue o seu filho de um ano e meio no Parque Municipal de Belo Horizonte. Ele é músico, ator e brincante.

Tempos e espaços de pai e filho juntos. Estamos no âmbito dos cuidados, onde um macho também cuida da criança. E o que um e outro fazem? Let it be (deixa rolar). Como assim? O pai ficar perto, observa. O menino escolhe a partir dos acasos que entram no seu campo perceptivo, sensorial e motriz. Melhor dizendo, faz nomadismos. O tempo todo a criança já está fazendo o seu território andar. O mundo sob seus pés se põe em movimento. Mesmo que esteja parada.

A criança pára em movimento: há sempre desejo. E quando não há intenção direcionada, há o que meu amigo e eu chamamos de errância: olha em volta, deixa que as coisas possam emergir de um campo de virtualidade e produzam, por si mesmas, novas ocorrências. Vê o banco do parque. Quer subir. Esforça-se. O pai o ajuda vocalmente – com sons de esforços e encorajamentos – mais deixa que o menino o faz. E junto com ele comemora a conquista.

Aqui está o primeiro lance: o pai/a mãe – aquele que cuida – recebe, aceita, valoriza e encoraja. Tudo o que o menino faz é de interesse do pai. Observa cada solução de problemas motores (o pezinho preso no ato de subir, a dificuldade de soltá-lo etc.). E com essa aceitação, o pai demora-se no tempo e no espaço. Permite-se viver sem projeções, sem finalidades. Sem pressas. E quem ensina isso?

O menino, o ancestral.

Referências:

O menino é o ancestral
Amar e Brincar – fundamentos esquecidos do humano

Brincar: tekné e poiesis

O brincar é uma tekné e uma poiesis

O brincar é algo que antecede o brinquedo. Por isso digo que ele é uma tekné. Walter Benjamim já havia antevisto a imanência própria desse ato tão pouco compreendido pelos adultos. Não pelo fato de a infância permanecer algo inacessível, uma espontaneidade para sempre perdida. Mais do que isso, nós adultos tendemos a nos acostumar aos procedimentos que nos sujeitam – que produzem nossas experiências de vida ou de subjetivação. A criança está mais submetida, mas os adultos estão mais comprometidos com a produção do real.

Para quem tem a infância por tema recorrente, é duro perceber como as crianças estão limitadas aos contornos do comprometimento adulto com as formas dominantes de sociabilidade. Fugir de tais contornos, moldes e aprisionamentos, eis o que o brincar nos ensina. E a criança fabula também para fugir de tais cercos, tristezas e fechamentos do mapa do viver. Mas a fabulação, que é um modo de brincar, não é produto de uma limitação, mas antes a invenção primeira: uma pedra que chapisca na água é uma coisa que cada um aprende por si ou vendo o outro fazer. Há, no brincar, um fluxo de sensações a serem vividas. Um ardil da vida diante do ardil da razão estabelecida. Que tais estratégias encontrem nas crianças seus caminhos, é coisa que faz sentido.

Obviamente que o brincar não é um privilégio de crianças. Todas as culturas que deixam respirar a vida para além das resignações, por baixo, pelas beiradas ou por alguma brecha, têm o brincar em conta. As culturas do Brasil trazem essas vertentes de ludicidade: as capoeiras, os brincantes, as músicas, as festividades, danças e teatralidades, as belezas que se expressam em bom humor e flexibilidade, são todas essas culturas do brincar. No entanto, é a infância que armazena tais provisões, pois o mundo adulto sempre sofre mais diretamente a moldagem proveniente do trabalho, do esforço, do escopo das subjetivações que precisam segmentar, parar, identificar, reter uma energia livre, que é a da vida.

São também culturas permissivas, em que a mulher tem papel importante, que experimenta o feminino para além do que os machos adultos definiram como a experiência possível. Ou que tem, em conta, por outro viés, o visitante como elemento acolhedor do menino/menina, travando cumplicidades poéticas. Mas isso são outras histórias. O importante, aqui, é lembrar que a infância tem no brincar sua ferramenta primeira – sua tekné de entrada no mundo. Nesse sentido, o brincar é, também, uma poiesis (fabricação de mundos). E uma cultura sem infância é uma cultura fadada a morrer de tristeza. Se há alguma nostalgia, é a de uma vida de pequenas explosões de acontecimentos em comparação com a mesmice de um cotidiano pré-fabricado.

É comum pensar que o brincar resolve-se numa vazão bruta de energia. Para uma cultura em que a libido é somente pensada como desperdício ou alívio imediato, quando não, controle sobre a vida livre dos outros, torna-se penoso, senão um desdém, imaginar outro modo de funcionamento para a ação lúdica. Ora, quando brinca o menino/menina abre um mundo e inventa a si mesmo o tempo todo, sempre mudando. Quantas vezes não ouvimos, mesmo, educadores dizerem: – as crianças precisam extravasar a energia acumulada!. De fato, energia retesada quer espaço. Mas não ao modo como pensam os adultos. Talvez, uma dos motivos seja o fato de o brincar estar em produção incessante. Acompanhar uma criança pequena desnorteia qualquer adulto. A vida, ali, não cessa de pular, de voltar, de encontrar o repouso no movimento e o movimento no repouso, fazendo conexões de sentido no meio do disparate e do imprevisto. Com tanta oferta, imaginam os adultos que o brincar vale muito pouco. Esse é um grande engano. O brincar é pura sofisticação. Isso quer dizer que quando brincamos nós produzimos uma tapeçaria, um vitral, uma sinfonia de acasos, errâncias e outras poéticas do efêmero. E que podem se resolver num objeto, que, então, chamamos de brinquedo. Mas o ato de brincar não depende de objetos especiais: qualquer coisa pode ser utilizada.

Tarefa primeira para educadores e artistas livres e descomprometidos: aprender a ver o brincar. Para isso, é preciso muita disciplina. O espontâneo não come à nossa mão sem muito exercício. Ensinar os educadores a demorar-se sobre as brincadeiras das crianças é a tarefa primeira. Ter em mãos uma caderneta de campo para anotações, a tarefa seguinte. E anotar muito. A partir disso, de um olhar não preconceituoso, acolhedor e gentil, pode-se começar a entender o brincar e a sua importante função na educação infantil e no aprimoramento da vida no planeta Terra. Outro detalhe: não se avexe, brinque também!

Um conhecimento exploratório e sensível

Quando brincam as crianças estão conhecendo o mundo de um modo exploratório e sensível. Porém, seria um equívoco pensar o brincar em termos de pura cognição. Há muitas e muitas linhas e planos perpassando a atividade que encontramos entre as crianças. Algo que se pode encontrar entre os adultos quando estes se vêem livres do julgo do esforço voltado a fins, a que chamamos de trabalho. Em primeiro lugar, trata-se de uma polimorfia que não entende a hierarquização da experiência de vida. É possível que uma criança pequena persiga uma experiência sonora e a veja se transformar num desenho corporal ou num risco de giz sobre o chão. Há linhas no brincar. Para os adultos, isso pode significar não uma volta a um ser criança, mas àquilo que Deleuze chama de bloco de infância.

Chamo de exploratória a atividade que se permite seguir e surpreende-ser a todo instante. O meu foco é o brincar corporal. No entanto, entendo o brincar num sentido amplo, já que a própria criança passa da utilização de um objeto para uma atividade em que o corpo é a linha que se faz seguir. Veja o curso de um filete de água: ele flui. É disso que se trata precisamente quando se fala em fazer seguir. Obviamente que a criança não está numa dimensão totalmente exploratória o tempo todo. Há linhas de conservação, de repetição. Mas isso já é uma nova exploração: um ritmo, um tempo dedicado a um ir e vir sem parar. Um estado que é instaurado a partir disso. Quando uma criança corre em círculos, ou quando balança sem parar, quando repete indefinidamente – já se trata de explorar uma permanência que, de todo jeito, irá variar, mas a partir de elementos quase imperceptíveis.

O brincar, quando é exploratório, não conhece os objetos que chamamos de brinquedos institucionalizados. Refiro-me, aqui, à uma cultura da criança em oposição à cultura de mercado que procura impingir seus produtos. Seu modo pré-fabricado e experimentar o mundo. Nisso erra as pedagogias que oferecem às crianças atividades dirigidas, como os jogos em que se deve perseguir um fim extrínseco ou contornos já feitos, nos quais o resultado foi previsto de antemão. Nisso o brincar exploratório distingue-se do jogo de regaras. Neste último, já se tem por antecedência aonde se quer chegar. No plano exploratório, que é um plano de experimentação, que ocorre emerge da situação, do campo de percepção.

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O brincar e a educação infantil – I

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A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.

Imagem: Kandinsky

Por que o brincar?

O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.

A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.

O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação


“O corpo em movimento, na sua agitação emocional e criativa, não é admitido na escola senão durante o ‘recreio’ quando o professor vigia e a rigor observa, evitando misturar a sua autoridade a esses jogos pueris. É a vida muito tempo controlada que explode. A nós, é precisamente essa vida, esse movimento que interessam, e com os quais queremos trabalhar porque são a única expressão verdadeira da criança”. Lapierre e Acouturier[1]

O brincar corporal e exploratório, esse o plano experimental para o Teatro-Educação. Quando comecei a trabalhar com crianças numa proposta não diretiva, fui tocado por algo que passou a me perseguir o resto da vida: o corpo em movimento e sua expressividade. No entanto, esse plano intensivo é de difícil assimilação pelos projetos pedagógicos, quando o conhecimento é tomado exclusivamente no seu aspecto racionalista. Não quero, no entanto, advogar uma proposta irracionalista. Não precisamos viver nesse binarismo. Ao contrário, seguindo o mestre compositor Koellreutter, eu diria que se trata antes de uma proposta a-racional.

Lapierre e Acouturier são dois autores que podem inspirar, em muito, a criação de um plano experimental que envolva o brincar corporal. Independente da perspectiva de psicomotricidade relacional e sua prática, o que propôem é uma ponte entre o sistema voluntário e involuntário. O brincar é essa ponte. No caso, trata-se de retomar contato com a via do tônus corporal.

Entretanto, a maior parte das teorias e práticas de Teatro-Educação têm por base a idéia de representação. E isso, para uma educação de base racionalista e logocêntrica, é um prato cheio. Ora, a arte não foi feita para tornar-se um instrumento de aquisição de estágios de desenvolvimento mental. Antes disso, ela é um modo de conhecimento que se realiza pela singularidade. Isto é, pelo desigual.

A via do corpo que brinca é a da sensibilidade. Há inteligência nisso.

De Lapierre e Acouturier tirei essencialmente o contato dos corpos mediados por objetos. Os exercícios criados a partir disso permitiram-me descortinar um mundo de micro-sensações, envolvendo um plano de criação dotado de grande plasticidade. Um desses exercícios é o que faz uso de panos, por exemplo: as crianças criam a partir da relação mediada pelo uso dos objetos. Seria algo como deixar que o corpo conte a história – sem mímica, apenas porque está em envolvido com o que o afeta. Em vez de enfatizar a idéia do teatro como representação, passei a buscar nele a vida do movimento, da plasticidade, da sensorialidade. O que me levou às pesquisas em improvisação, dança contemporânea e teatro físico e pós-dramático.

Podemos chamar esse plano de experimental corporal de pré-reflexivo. E é nessa explosão da vida que ocorre no brincar não-dirigido que encontramos as forças expressivas da criança. Não há dúvida alguma: antes de querer ensinar teatro para crianças, procuro aprender com elas. E é isso que levo para adolescentes, atores e bailarinos. Voltar à vida do corpo.

O brincar exploratório e sensível da criança apresenta uma cultura que se organiza como jeito de corpo, como vivência tônico-muscular. A pergunta que fica: a criança que brinca precisa de aprender teatro? Afirmo que não – vejaTeatro, Educação e cultura do brincar . Ela precisa de espaços e desafios, de artistas-educadores ou de educadores sensíveis que possam abrir espaços para o brincar e acolher suas criações livres. E isso é um modo de teatro. O que entra em ressonância com os teatros físicos. O que dificulta esse caminho favorável ao brincar é, de um lado, a predominância do teatro-representação (racionalidade, oratória, comportamento social aprendido, regras e discursividade). Ao contrário, proponho um teatro-experiência (a-racionalidade, ênfase na abertura perceptiva, volta à sensorialidade como um plano de inteligência e conhecimento).

Referências:

[1] Lapierre e Acouturier – Simbologia do Movimento – Ed. Artes Médicas – Porto Alegre.

Imagem: Portinari – Meninos Brincando

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Poética do brincar

Um modo de habitar o mundo: o brincar

Paul Klee: Som Antigo.

“O brincar é uma poiesis (do grego: produção, fabricação): – uma poética – abertura de mundos na vida cotidiana. O poeta é este que abre mundos – fabrica ficções – e sua matéria pode ser som, imagem, palavra escrita, movimento, pedra, objetos abandonados..”.

“Quando as crianças brincam com o corpo, elas estão narrando. Diante de uma sociedade como a nossa, “logocêntrica” e, podemos dizer, “adultocêntrica”, é muito difícil apresentar o brincar corporal em termos de narração do viver.”

“O brincar nos ensina que podemos nos relacionar com o corpo, com a natureza externa e interna, e ainda com os outros seres humanos, para além dos ditames da sobrevivência restrita a uma relação puramente instrumental. Quer dizer, para além de uma relação onde o outro é apenas um instrumento, um meio, para meus fins. Para entender isso, a educação de crianças teria de abrir mão de sua relação meio-fins, quer dizer, puramente instrumental: acreditar que o brincar somente tem direito à existência pedagógica se puder servir para ensinar algum conteúdo programático. Ao contrário, é por si mesmo e unicamente por si que o brincar pode atuar pedagogicamente. Para tanto, é preciso escutar o que o brincar e sua cultura nos estão trazendo.”

“A poética do brincar se apropria dos refugos da economia da sobrevivência. Seus espaços vazios, terrenos baldios, detritos, e toda sorte de materiais são re-apropriados – o mundo é habitado. Tudo isso é possível por que, para a cultura da criança a sensibilidade é algo que não pode simplesmente ser contornado. Para a criança, não se pode viver num mundo já dado, ela o habitará e nesses objetos, produtos residuais – abandonados ou em fase de abandono temporário porque ainda não servem para nada – reconhecerá, como diz Walter Benjamin ‘o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas’ (1).

Referências –

Obs. Trechos extraídos de um texto que escrevi em 2002, intitulado O Brincar como um modo de habitar o mundo, a partir de uma conferência do mesmo nome, no VI Fórum de Educação e Cidadania, promovido pela Secretaria de Educação de Camaragibe – PE, em 2002.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico – São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

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Linhas de errância

Seja na criação cênica ou na pesquisa em arte-educação, sempre tomo por tarefa observar crianças brincando.

O mapa: a pesquisa do corpo que brinca.

Outro dia, vi dois meninos brincando nos jardins descobertos de um centro comercial, numa manhã de sábado, vigiados por uma moça que deles cuidava. Um dos meninos brincava com uma espada e uma fralda amarrada nas costas e, vez por outra, interagia com o pequeno escorredor que ali estava. O outro, porém, não se integrava a esses usos do corpo e da imaginação, disparando antes a correr pelo espaço aberto. Tinha os cotovelos quase encostados nas costelas, os braços se abrindo meio trêmulos, como asas de passarinho. De repente, parava e volta a correr em outra direção. Ele traçava linhas de errância. São linhas que não fazem conexão com os nexos imediatos de sentido que configuram nossas experiências.

A moça que tomava conta dos meninos correu desesperadamente no encalço do menino e o recolocou ao lado do irmão. De nada adiantava, pois ele logo saia correndo, concebendo nova linha de errância.

Descobri algo novo sobre a cultura do brincar.

Um movimento que cria outras possibilidades de desenho no tempo-espaço. São linhas de errância. Deleuze e Guattari freqüentemente falam sobre as linhas de errância e dizem tanto dos movimentos que as crianças criam, que por por momentos desnorteiam as referências das linhas costumeiras, quanto das crianças autistas.

Com o movimento daquele menino, descobri coisas novas sobre o movimento corporal. A precipitação do sentido num plano que não pertence ao do neurótico. Isso diz respeito, também, à dignidade de outros modos de ser. Não posso deixar de dizer que há um encanto do brincar do menino com a fralda amarrada às costas e sua espada cortando ventos inimigos. Quem não se deixa tocar por isso? Porém, no movimento do outro menino, instaura-se outro plano, menos reconhecível: uma trajetória de errância, sem significado imediatamente perceptível – ou melhor, que rompe com as significações. O plano do menino que dispara a correr num vácuo de espaço sem finalidade aparente (mesmo dentro do universos do brincar).

Então, poeta/ator/bailarino, você me traça um linha de errância?

Deleuze e Guattari(Mil Platôs, vol. 3) referem-se às linhas de errância dos movimentos das crianças autistas:

“Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos das crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as ‘linhas de errância’ e as ‘linhas costumeiras’. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existitur uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo” (p. 77).

Trata-se, portanto, de linhas (linhas duras e molares, linhas flutuantes e linhas de fuga). Somos compostos por linhas, definem os pensadores.

Não que o brincar da criança neurótica (reconhecível por nós) deixe de ser interessante. A perspectiva é, entretanto, outra: trata-se da dignidade de uma linha de errância que foi vista, quase sempre, como esando à margem dos processos de significação e, por isso mesmo, sem importância para a cultura.

Ao contrário, por estarem mesmo à margem dos regimes de significação, é que tais linhas de errância não só denunciam o fator inerentemente errante de nossas construções mais racionais, apesar de sua lógica molar, dura e pretensamente não fraturada, mas também produzem novas potências criativas.

Não vai aqui nenhum elogio de uma possível desrazão ou espontaneísmo da infância como modelo de criação. Não há modelos. No entanto, penso com Deleuze e Guattari: trata-se de investir na arte como domínio artesanal. E o brincar é o domínio do fazer criativo que a criança guarda, cultiva e nos oferece em primeira mão. O brincar tem tudo a ver, principalmente se tivermos em mente que tornar-se adulto é, em muitas culturas, submeter-se a uma realidade que, não deixando de ser uma invenção, aparece como totalmente objetiva.

As linhas de errância ocorrem tanto no brincar das crianças neuróticas (quando produzem um movimento não reconhecível) quanto nas crianças autistas (e nestas, talvez, estejam como nervuras expostas na experiência cotidiana).

Abro, portanto, a primeira página desse blog com essa anotação sobre as linhas de errância do brincar. Outras virão.

Bibliografia:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996.