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O aprendizado: Proust visto por Deleuze

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Imagem: Amanda Please

Perguntamo-nos o que é aprender e como se pode aprender. Mas por que queremos ou devemos aprender? Os animais aprendem desde cedo a sobreviver. Nós humanos somente  podemos contar, de início, com nossa fragilidade,  nossa inadaptação, nossa dependência da cultura dos cuidados, que é também  matéria e veículo de expressão e conhecimento. E vamos em busca de algo! Mas para quê?

Ciência, arte, filosofia e amor constituem nossos aprendizados.  E assim adentra-se, seguindo Gilles Deleuze, na obra de Proust, Em busca do tempo perdido. Trata-se, para Deleuze, de uma “busca da verdade”.  Pois, se a obra “se chama busca do tempo perdido é apenas porque a verdade tem uma relação essencial com tempo”.  O prazer decorrente das nossas buscas, diz Deleuze, é um prazer pela verdade. No entanto, não temos a condição natural de buscar a verdade. Deleuze mostra, a partir de Proust, que “nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca”.  E completa dizendo que não se encontra a verdade naturalmente, sem um esforço de autorecriação, posso dizer. Para Deleuze “ela se trai por signos involuntários”.

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Os jogos corporais e simbólicos da criança: entre a ficção e o real

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Volta e meia deparamo-nos  com o tema da violência e da agressão nos jogos corporais e simbólicos das crianças.  Nesta hora perguntamo-nos sobre os limites entre realidade e ficção. E mais: em que medida tais ficções, supondo que estejamos nesse campo, acabam por influenciar o comportamento real? Questões que se fazem recorrentes, principalmente nas práticas do Teatro-Educação, quando o real e o imaginário parecem se misturar. Ocorre de encontrarmos esses temas violentos e agressivos nos desenhos das crianças. Veja, por exemplo, as imagens em tela desenhadas por uma criança de 07 anos de idade: armas, ataques e batalhas, sangue escorrendo, terror…  No teatro isso é mais “dramático”, justamente porque os corpos estão ali, em interação.  A partir de Peter Slade (do seu já clássico O jogo dramático infantil), podemos entender que, no primeiro caso, o jogo é projetado (no papel, quando se trata de desenho, ou com objetos e bonecos).  E nos jogos simbólicos e corporais, o jogo é pessoal.  Nestes últimos, estamos envolvidos de corpo e alma.  E então, nos perguntamos mais uma vez: qual a natureza desses jogos corporais e simbólicos, quase sempre carregados de tais cenas agressivas e violentas?

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Teatro performativo com crianças

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Outro dia pude vivenciar uma experiência de teatro performativo com crianças.  O que vem a ser este tipo de criação cênica e corporal? Antes de tudo, trata-se de um plano contaminado pela Arte da Performance. E neste caso deparamo-nos, ainda, com as inúmeras  tentativas de classificação. Porém, mais intenso e expressivo é pensar por devir,   limiares e transformações… Isso não nos impede, evidentemente, de buscar definições. Não por contornos num sistema de encaixe, mas por vizinhanças e variações contínuas. Ou seja, fazendo-se em movimento. 

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Brincar de esconder: um modo de percepção

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Imagem: Ana Cotta

Outro dia, voltei a brincar de esconde-esconde. Eram três meninas e um menino. Como eles não se conheciam, encontravam dificuldades para estabelecer contato. Então, sugeri que brincássemos de esconde-esconde. E fui convidado a brincar também. Há muito não me envolvo com as sensações desse jogo. Desde quando? Nem me lembro… A brincadeira em tela é toda uma coisa de tempo,  duração e  linhas de percepção. Aqui, mais do nunca, estamos vivendo o ser ou não ser percebido.

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Cultura lúdica da infância: além da nostalgia

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Imagem por Fily

Como não recair na nostalgia quando falamos de uma cultura lúdica da infância? O movimento retroage. E nos encontramos, assim, no território seguro de uma eterna repetição.

Ir além da nostalgia é a tarefa cotidiana daqueles e daquelas que têm a ludicidade da criança por tema e paixão. Em busca de algo que a lembrança não consegue abarcar mas que é pura memória e jogo vivo de acasos e afetos.

Sempre digo que a infância tem uma altivez inexprimível. E uma dor e alegria que a acompanham. A criança está submetida ao adulto, ao que ele impõe ou antepõe para a configuração do mundo. Mas a criança, mesmo quando sofre a ação adulta, tem um sentido de sobrevivência no futuro. O adulto está cercado e por isso quer da criança sua adesão moral. Ocorre que a criança habita frestas e hesita entre ações úteis. Nisso reside seu poder e sua superioridade.

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Um mapa para o brincar

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Muito legal a iniciativa do blog da Folhinha ao criar o projeto Mapa do Brincar. Tanto as pessoas (adultos, crianças etc.) podem enviar relatos de suas brincadeiras quanto instituições. No site há todas as informações para participar do projeto. A iniciativa é interessante porque contribui para a socialização da cultura lúdica, como é praicadat por grupos humanos, épocas diferentes etc.

No blog há uma referência muito bacana às Meninas de  Sinhá, de Belo Horizonte. E é preciso dizer que o co-criador do album Tá Caindo Fulo é o músico, pesquisador cênico e brincante Gil Amâncio. Lembro-me quando Gil resolveu dedicar-se  também ao grupo de terceira idade que se reunia no Centro Cultural Alto-Vera Cruz, pesquisando principalmente as canções de roda. O resultado disso é o cd premiado.

Pelo blog do projeto você toma conhecimento também de muitas brincadeiras e de como as pessoas brincam.

Então, fica o convite.

Mais referências:

Regulamento do Projeto Mapa do Brincar

Ficha de inscrição Projeto Mapa do Brincar

Vamos brincar de quê? Por Quintarola (Cláudia Souza)

Vivo ou morto? Por Quintarola (Cibele Carvalho)

Tempo de brincar de quê? Por Luiz Carlos Garrocho

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Um artista brincante: Dim

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Brincando na chuva. Autor: Dim

Dim é um artista brincante. Como ele mesmo diz: “brinca de fazer brinquedos artesanais”. E isso há quarenta anos! Publico a seguir um pouco de sua história com o brinquedo, o brincar e a arte, a partir de uma mensagem que ele me enviou. Uma história muito bonita, de encher a vista.

João-teimoso: persistência e alegria

“Um dos brinquedos que eu mais gosto é o João-teimoso, porque ele traz a idéia de persistência, de nunca desistir dos nossos ideais. Ele foi um dos primeiros brinquedos que conheci, foi na feira de Camocim, a pedra. Chamava-se pedra porque era uma feira no calçamento mesmo, e tinha um pano estendido no chão e alguns brinquedos, mané-gostozo, rói-roi, na época conhecido como besouro. (…) E tinha um brinquedinho com umas orelhinhas pra cima, que parecia um coelho: era todo enfeitado com papel de seda e pintadinho, a gente derrubava e ele voltava, e eu gostava demais desse brinquedo porque achava interessante ele ir e voltar. Aí eu desmontei e descobri que tinha um peso ali em baixo, foi assim que descobri o João- teimoso. Até hoje ele está em tudo nos meus trabalhos.

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Memória: armazém de coisas ainda não-coisas

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Imagem: por Moontan

Por um desvio suave do dia, passei a pé pela rua onde morei desde a infância, quando me mudei para Belo Horizonte no início dos anos 60. Parei na esquina e fiquei um momento em silêncio. Sempre digo que o silêncio é uma estratégia de escuta, de recepção, de emergência de sensações outras. Assim, vieram coisas. Algumas lembranças logo apareceram. Emoções fortes surgiram.

Permaneci quieto.

A minha árvore ainda está lá. Menos a casa, que virou, com mais duas outras, um enorme prédio.

E vieram também lembranças puras. Como explicá-las? Elas não figuram. Mantém em suspenso qualquer atualização: estão lá, podem advir, mas permanecem ausentes. Armazém de coisas ainda não-coisas. São essas as forças que nos garantem em momentos difíceis, principalmente quando temos de nos inventar mais uma vez. Assim vejo a infância também: não o que se encaixa numa classificação das imagens registradas, mas aquilo que se abre para o futuro.

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Lembranças de um recreacionista II

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Imagem de Gonzáles-Alba

 

Num outro texto abordei a Função do brincar na educação infantil. Volto às lembranças do recreacionista que fui. Desta vez, no entanto, quero cuidar de outra questão: a diretividade ou não-diretividade da ação. Como se colocar diante do universo lúdico da criança? Isso depende, naturalmente, do contexto. No caso, estamos abordando a função do educador no recreio escolar.

Como recreacionista, vivi experiências que me trazem, ainda hoje, insights muito interessantes. Antes de tudo, é preciso voltar ao lugar das lembranças. Como dizia no outro texto, tudo começou mesmo na Escola Balão Vermelho. Estávamos no início da década de 1970, colhendo os efeitos do recrudescimento da ditadura militar, das perseguições políticas, num clima de medo. E no meio disso tudo, três educadoras, Bete Lobato, Ieda Brito e Maria Helena Latalisa,  resolveram abrir um espaço para o porvir: uma escola para a educação da sensibilidade, para a busca livre do conhecimento e do estabelecimento de novas relações entre as pessoas. E como disse antes, começavam por mudar o conceito de recreio: não mais o oposto ao trabalho, mas o que lhe é complementar  e o resignifica em última instância – o brincar como o trabalho da criança, exploratório e sensível, rizomático e aberto.

Nos primeiros momentos, eu adentrava naquele mundo das brincadeiras infantis. As crianças tinham um quintal, com areia, terra, árvores etc. Não havia o medo de se sujar, como observo em algumas escolas hoje. Aliás, outro dia vi um tanquinho de areia numa escola que ficava a altura das mãos das crianças, para que elas não precisassem entrar nele – e nem podiam, pois era apenas uma espécie de canteiro. Ou seja, envolver-se com o mundo sim, mas apenas com a ponta dos dedos…

Era uma agitação molecular. Quando digo isso, quero dizer com base em Gilles Deleuze que as crianças vivenciam encontros não previsíveis nos espaços do recreio. Acho que na maioria das escolas, hoje, os espaços são excessivamente delimitados – isto é, delimitadores. Molares, para pensar de novo com Deleuze. As crianças já encontram brinquedos e formas de brincar moldadas, formatadas: um tanque de areia, brinquedos etc. Não que eles não possam existir, mas não precisam dominar a paisagem. No caso do Balão Vermelho, nós tínhamos à nossa disposição um quintal: aquilo que o nosso blog amigo, o Quintarola, tanto valoriza.

Qual a função do recreio na educação infantil? Naquela demanda do Balão Vermelho nos idos 70 estava uma ideia muito importante: espaço potencial de educação, de atividades de conhecimento, porém num modo não diretivo. Mais do que isso: com os materiais que a criança encontra a mão para manipular e se envolver de modo não programado. Misto de meio natural (terra, árvore, areia, espaços, pedrinhas, folhas, gravetos…) e produzido (espaços, brinquedos de arquitetura etc.).  E então entramos na questão: eu começava entrando num campo de agitação molecular, onde as coisas todas (toda sorte de brincadeiras e de encontros não planejados) já estavam acontecendo.

Que não se entenda a não-diretividade como espontaneísmo etc. E aqui reside a maior causa dos enganos pedagógicos: deixar como estar para ver como é que fica. Os educadores, nessa hora, estão tomando café, conversando, distraindo-se etc. Nós, recreacionistas, sabemos que essa é a hora.

Difícil ver e entender o que acontece nesse campo de agitação molecular. No outro texto chamo a atenção para os processos metaestáveis, sistemas auto-organizados, emergentes etc.  Os educadores deveriam ser educados a aprenderem a ler o ambiente flutuante e móvel do brincar não dirigido. E descobrir ali, também, suas repetições, suas linhas molares, segmentadas, pois que elas existem ali.

Mas eu não tive a oportunidade de olhar de fora o brincar das crianças. Fui logo caindo naquele mundo. Caíram meus modelos, minhas máscaras, minhas defesas. E entrei em contato com a vida pulsante do brincar nos quintais.

O que eu fazia? Eu me envolvia diretamente com as atividades das crianças. E eu me descobria brincando com elas. Não havia método, eu estava descobrindo as coisas… Maria Helena Latalisa, a Leninha, logo me deu um “presente” que me acompanharia por toda a vida em todas as minhas outras atividades: um diário de campo.

Aqui, também, o primeiro passo para adentrar num processo não diretivo e que evita, contudo, de cair no buraco do espontaneísmo. O registro das atividades, das perguntas, das questões… No emaranhado das experiências você puxa uma linha, acompanha seu desenvolvimento, sua direção… E então pode voltar, no dia seguinte, com outro modo de entrar naquele mundo.

Podemos perseguir, assim, outro modo de nos entendermos como recreacionistas: nem não diretivos e nem diretivos – em processo. Guardiões do processo, deveria ser o nome da profissão de quem trabalha com a recreação  na educação infantil. Muito diferente do recreacionista que tem por função apenas oferecer objetos (bolas, cordas para pular, jogos etc.) para as crianças. Ou que vive somente de “controlar” o momento do brincar.

O momento em que as crianças estão livres de atividades dirigidas, voltadas para o brincar somente, é uma cartografia de espaços e tempos. Uma configuração experimental, como aborda Gerda Verden-Zöller.

Voltando às anotações, através delas  você descobre um meio de realizar uma intervenção não intervencionista, se me explico bem.  Quero dizer que você toma posse de uma imanência e, a partir dela, interage com o meio, seus impulsos e o outro. Quanto aos cadernos, eles tornam-se uma criação sua, servindo a múltiplos fins. Os cadernos de campo foram meus grandes aliados. E continuam sendo. Em toda e qualquer aula ou oficina de teatro, ou mesmo ensaio, meus diários estão ali, rabiscando a pele das coisas, fazendo mapa.

Depois, passada a primeira fase – a do espanto na ação – comecei a trabalhar de modo cada vez mais diretivo. Passei do recreacionismo para a oficina de arte, no caso, de teatro. Mas, a cada vez que aprofundo mais nesse caminho diretivo, redescubro o primeiro dia, aquele em que cheguei num quintal e brinquei com crianças sem qualquer direção predeterminada. Apenas seguindo a intuição e as linhas de errância do brincar.

Uma volta mais diretiva exige, a toda hora, uma revolta menos dirigida.

Referências –

Imagem de Gonzales-Alba: Muro com manchas, rachaduras e grafia

 

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A crise econômica mundial e a volta para o brincar

Era noite e levamos as crianças para brincar na rua. São essas as condições atuais: é necessário que os pais estejam por perto. Quanto mais à noite!

Outro dia, o jornal dizia que no Bairro Vera Cruz, de Belo Horizonte, as crianças brincam nas ruas, as pessoas conversam nas calçadas e a violência é quase uma desconhecida naquele pedaço do mundo. Não é mais assim na maioria dos lugares.

Éramos dois pais, uma menina, dois meninos e uma noite de um resto de verão.