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O movimento e o caminhar como conhecimento

Na introdução de Ways of Walking: ethnography and practice on foot ( University of Aberdeen, UK ), os editores, Tim Ingold e Jo Lee Vergunst, contrastam os modos de aprendizagem das crianças ocidentais nas escolas e das crianças aborígenes. O livro se propõe a a uma abordagem antropológica transdicisplinar (entre disciplinas e temáticas) sobre os modos de caminhar, a percepção do ambiente, o pensamento, o corpo, a criatividade etc. Os autores nos convidam, por exemplo, a notar que um adulto sempre tem o olhar para longe do aqui-agora quando conduz uma criança pela mão, enquanto esta mantém o olhar mais baixo, mais flutuante, aberto às ocorrências do entorno.

Selecionei dois trechos da Introdução (numa tradução livre), quando os autores comparam práticas de condução das crianças por adultos, nas culturais ocidentais  e aborígenes. Eles citam um dos artigos presentes no livro, em que a autora, Elizabeth Curtis, discute uma prática escolar  em que as crianças vão, guiadas pelos educadores, estudar o patrimônio histórico da cidade.  O modus operandi, que conhecemos tão bem por ser tão usual, é o de uma separação entre o pensamento e o caminhar. O primeiro se faz sedentário e o segundo se vê controlado e, por isso, linear.

“O objetivo desses passeios educacionais é o de aumentar a consciência do patrimônio arquitetônico da cidade pelas crianças. Elas seguem uma trilha previamente planejada, ligando uma série de locais de interesse especial. Em cada local, sucessivamente, elas param a fim de observar e registrar. Tais observações podem ser de natureza auditiva e tátil, assim como visual, tais como o som de água correndo em um barranco escondido ou a textura de uma pedra cortada. No enanto, na medida em que seus professores estão guiando as crianças, o andar em si não é entendido como uma prática de observação, nem tampouco os mapas com as trilhas que se  usam como referência . Observações, nesse caso, devem ser feitas a partir de uma posição estanque, não em movimento. Andar a pé, além disso, é considerado simplesmente como um meio para ir de um local a outro.

Durante os  passeios, as crianças devem se comportar de forma sensata e de seguir as regras de segurança urbana. Idealmente, devem marchar em dupla, lado a lado, em uma linha reta (…) Embora instruídas a olhar e escutar, as crianças devem focar a atenção  no tráfego e nos transeuntes, a fim de evitar acidentes, e não em coisas como o vento, a chuva ou o sol, o voo dos pássaros, os latidos dos cães, as poças e folhas de outono (…) que tornam cada rua um lugar de tal interesse tão chamativo para esse detetive em miniatura, cujos olhos ainda estão perto do chão. Pois cada criança é mesmo uma espécie de detetive, principalmente3 quando não está sendo vigiada, como no caminho que faz a pé para a escola e de volta para casa, absorvendo como  as imagens, sons, e cheiros de seu entorno variam com o tempo e as mudanças de estações.”

“Essa divisão entre imobilidade e movimento [quando se tem que parar para observar, como ocorre nos passeios e excursões escolares], soaria muito estranha aso Batek da Malásia, caçadores-coletores que vivem nas florestas descritos por Lye Tuck-Po (Capítulo 2 do livro). Nos deparamos com as dificulades de Lye no seu caminho através da floresta tropical, um ambiente que não poderia ser mais diferente da paisagem urbana pavimentada de sua infância, quando se evocava {a semelhança] com uma selva, por ser um lugar estranho e temível.

Agora, vivendo com os Batek, ela se encontra escorregando e deslizando através de um denso emaranhado de raízes, cipós, lodo  (…) onde nunca se pode ter certeza de que o chão é seguro. Nesse ambiente altamente dinâmico  nada é exatamente o mesmo de um momento para o outro. Os Batek ‘treinam’ os seus filhos nas artes da negociação com a floresta, não através da imposição de uma disciplina, ou ao modo de mantê-los em uma corda [como se faz com os cães que conduzimos na rua], mas sim por deixá-los, tanto quanto possível, livres para os seus próprios desejos. Os adultos seguem pela atrás, em vez de assumirem a liderança, permitindo que as crianças  encontrem os seus caminhos, no ritmo que lhes é afim, mantendo-as sob observação, porém de um modo suave.

Para os Batek, como mostra Lye, andar compreende um conjunto de performances corporais que incluem a observação, a monitorização, com lembranças evocadas [os adultos estão sempre a narrar suas histórias, mas não para prever o que vão encontrar pela frente] ouvindo, tocando, agachando e fazendo escaladas. E é através destas performances, ao longo do caminho, que a imobilidade é forjada. O movimento, aqui, não é algo separado do conhecimento, como é na teoria educacional que subscreve a prática de sala de aula. Em vez disso, o movimento de andar é em si uma forma de saber.”

Por Luiz Carlos Garrocho

Pesquisador e criador cênico, arte-educador e militante estético-cultural.

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