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Teatro antes do teatro: o brincar e a cultura das ruas

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Tive o privilégio de viver o teatro antes de conhecer o teatro. Como foi isso? Início dos anos 50, no nordeste de Minas, Teófilo Otoni. A televisão ainda não havia chegado lá. Mas já tinha ido ao cinema.

Então, isso já não era uma influência cultural? Sim, de qualquer jeito.  Mas tal matéria fílmica era muito diferente dos comportamentos representados diante do outro. Era uma janela tremulante e mágica. Vinicius de Moraes falava que a imagem projetada é como aquela pequena chama no meio da escuridão: um fascínio ancestral.

E o teatro? Eu nunca havia visto. Então, eu brincava de quê? E como se pode dizer que toda criança pequena faz teatro sem conhecer teatro? Meu avô fez para mim uma espada de madeira pequena. Vivi o tempo da feitura, do imaginário forjado ali na minha frente. Uma duração. E tive brinquedos comprados também. Revólveres que me encantavam, um ao lado do outro. Sim, os cowboys, eu os vivia intensamente. E uma espingarda de pressão com uma rolha e um barbante na ponta. Mas nada disso era  mais forte que outra coisa: o ato de brincar como poiesis. Pois o brincar antecede o brinquedo: é maior do que ele. 

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Mãe da rua: um tempo que se foi

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Gostei muito do livro de Ettore Bottini, Mãe da rua (São Paulo: Cosac Naify, 2007). Bom para ler junto com os filhos. Acho que funciona mais com meninos. As brincadeiras e o mundo de vida ali apresentados concernem a esse universo. Como diz o autor: “este é um livro para ex-meninos. Se as meninas quiserem, que escrevam o seu”. Acredito, porém, que ex-meninas interessadas na cultura lúdica das ruas vão se esbaldar e, talvez, um dia vão querer escrever o seu.

“Vai brincar na rua, moleque! – disse a mãe. E nós fomos. É claro que a frase foi pronunciada numa São Paulo já distante no tempo, quando a profissão das mães era declarada no recenseamento como ‘prendas domésticas’, quando as ruas comportavam com folga o número de automóveis e quando ainda não existia a neurose atual da violência urbana.”

Assim começa o livro de Ettore Bottini. É farto de imagens, descrições de brinquedos e brincadeiras praticadas por meninos naqueles tempos idos. Ele descreve, além disso, os territórios, as negociações entre os bandos e as pequenas armas. Uma delícia rever tudo isso.

E uma curiosidade: fiquei sabendo de um jogo, o Taco, que tem algumas semelhanças com um jogo muito comum nos anos 60 e 70, que era o Bente altas, licença para dois. Parece que o primeiro era encontrado em São Paulo e o último em Minas Gerais. Ao que tudo indica, ambos os jogos têm influência do Beisebol.

Por fim, são essas saudades de um mundo onde o conhecimento e a sociabilidade passavam antes pelo sensível e que, por isso mesmo, tanto se assemelhava à arte. Recomendo, muito.

Mais referências

Bente altas. Mapa do brincar.

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Quando brincar é lembrança que dói

Quadrinhos de Luís Felipe Garrocho: Bufas Danadas
Quadrinhos de Luís Felipe Garrocho: Bufas Danadas

Essas tirinhas me tocam duas vezes. Uma, pela história e pela arte. É feita diretamente no computador. Tem essa linha espontânea – quer dizer, não muito controlada – pela tecnologia, posso dizer, rudimentar mesmo. Coisas de quem curtiu o momento de desenhar no Paint – um programa de poucos recursos. E o resultado é essa coisa linda, que explora as próprias limitações do meio. Que se tornam suas possibilidades, seu plano de invenção. E o modo como cria suas histórias: um jeito de produzir anticlímax – como o Felipe me disse um dia. Aqui, o anticlímax é um retorno do primeiro quadrinho, mas que volta diferente. A outra coisa que me toca, eu deixo sugerida, nas linhas que se seguem.

Depois de tudo, esse é também um anticlímax no sentido de quebrar as imagens tão previamente construídas sobre o brincar. Uma idealização, muitas vezes. Aqui, o brincar também tem sua dor. Aliás, não poderia deixar de ser isso. O brincar, intercalado entre dois quadros: o de ficar ali, no sofá, diante da TV e o divórcio dos pais. Interessante como as imagens sequenciais abrem sentidos que não se fecham. E eu tenho cá minhas leituras: pela criança que fui, e por me sentir parte dessa história de Felipe. Se eu vi um menino brincar e construí algo disso, agora tudo se desfaz e refaz sob outros signos, outras luzes.  

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Uma geração de analfabetos motores

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Imagem do filme Wall-e: as pessoas já não se movem mais

 

A ausência de contato físico continua a se impor entre pais e filhos. E assim vão surgindo seres menos afetivos, menos livres e sem desejo pelo movimento. Ou, então, desorientados nos seus espaços de ação. Tenho observado que muitos pais, ao adquirirem a cadeira para transportar bebês em veículos, aproveitam para levá-los também de um lado a outro nos passeios. Vi um bebê sendo levado assim, flutuando no espaço, olhando aquele imenso céu azul. Lembrei-me, logo, do planeta Wall-e, o desenho da Pixar-Disney, do robozinho que volta à estação espacial, onde estão todos os humanos, e os vê entregues a uma letargia e total falta de movimento.

A cadeirinha é uma exigência da lei, a fim de dar segurança aos bebês e crianças pequenas. Além disso, é prática. Porém, não podemos esquecer que o mais importante é o toque. Diferente disso é quando levamos a criança coladinha no corpo, com um suporte, numa longa caminhada ou passeio. Mas deixá-la, de início, sem contato corporal, é um grande equívoco.  

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A criança, o circo e a educação

Imagem: Kamshots

Não sei por que as escolas insistem tanto que as crianças façam apresentações de teatro para a comunidade de pais, com recitações, imitações de show-business e do padrão interpretativo das novelas de televisão. Talvez, a explicação esteja aí mesmo: a escola como reprodução social. No entanto, existem tantas expressões presentes na cultura popular, mais interessantes, mais vivas. Pois se trata, afinal, de como articulamos ritual e imagem.  

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Há vida fora do brinquedo industrializado e dos shopping centers

 

Os dois meninos estão com onze anos. A moda é uma arma de brinquedo, que atira projéteis de plástico. O meu filho tem uma dessas, pequena, tipo revólver. Sim, acabei comprando para ele, de tanto insistir. Mas não só por isso: lembrei-me da alegria que me tomou quando ganhei de presente os meus primeiros revólveres de cowboi. E também das brincadeiras de assalto ao trem pagador em cima dos murinhos de nossas casas, nos anos 60.  E me lembrei ainda  dessa discussão meio estéril sobre a possibilidade ou não desses brinquedos induzirem a violência. Por tudo isso, pensei: vamos acompanhar isso… Ele queria uma arma enorme, mas aí eu achei que era muito exagero.

E então, ocorre que o amigo de meu filho veio passar o fim de semana com a gente. E trouxe junto uma enorme arma de brinquedo, uma imitação dessas que aparecem nos filmes e jogos eletrônicos. Um terror de arma! Aliás, uma estupidez. Não pelos motivos que estão por aí em circulação, mas simplesmente porque é um trambolho que impede qualquer imaginação. Meu diagnóstico é simples e direto, avesso ao cunho moralista: o brinquedo industrializado brinca sozinho!  Além disso, a arma de brinquedo era de um exagero só: impossível andar normalmente nas ruas sem chamar a atenção. Mas a coisa não se encerra aí: há toda uma cultura do tédio que é preciso driblar. E é disso que eu pretendo falar.  

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Jorge Mautner: o lúdico, a poesia, a irreverência e a infância

 

Jorge Mautner, músico, pensador e profeta do Kaos, um dos inspiradores do Tropicalismo, parceiro de Gil e Caetano. Quem já não ouviu falar desse artista, ligado em Nietzsche, capaz de passar do samba da velha guarda à visão existenciante, ao rock e à tragicidade alegre e dionisíaca? Autor de letras e músicas geniais, como Maracatu Atômico, Lágrimas Negras, entre tantas outras. Porém, um lado pouco percebido desse poeta é aquele que traz imagens e memórias da infância, assim como uma visão lúdica da vida e das coisas.

Você já se tocou nisso: filosofia, poesia e irreverência com cara de gibi?   

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Lembranças de um recreacionista (III): entrevista ao Jornal do Balão

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“O espaço era um verdadeiro quintal. Sim, havia um pé de goiaba, um tanque de areia, terra e grama, um pé de jabuticaba, uma mesa enorme ao fundo, um grande pneu de trator deitado, pequenos pneus sobrando aqui e ali. Tinha escorregador e uma daquelas estruturas metálicas onde se pode subir etc. Não se tratava de organizar as crianças e de lhes propor uma atividade. Elas já estavam em ação, num processo auto-organizado. Difícil perceber e entender isso, pois aprendemos equivocadamente a perceber o brincar espontâneo e não dirigido como algo desorganizado”.

Essa a atmosfera do recreio, no Balão Vermelho, nos anos 70.  O texto acima é o trecho de uma entrevista que dei ao Jornal do Balão (Escola Balão Vermelho, Belo Horizonte, junho de 2011). O pessoal do Balão deu um título muito carinhoso: “Lembranças de um professor inesquecível”. Como não ficar lisonjeado?

A série de postagens intituladas Lembranças de um recreacionista mostra aspetos desse projeto, voltado a uma utilização criativa dos espaços e tempos do recreio. Um projeto no qual eu tive a oportunidade de participar e que foi minha iniciação como professor de arte. Conto um pouco do que aprendi ali com as diretoras Ieda, Bete e Leninha, com outras professoras e, principalmente, com as crianças.

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O recreio e a culpabilização do movimento

Num artigo intitulado “Recreio e educação” (Folha de São Paulo, 18.10.2011), Rosely Saião comentou o castigo sofrido por uma aluna, por descer as escadas correndo. A menina, de dez anos, foi obrigada a escrever 500 vezes a frase “Não devo correr”, além de ter ficado seis dias sem recreio. A psicóloga e ensaísta faz uma análise do recreio, que é por natureza dado à movimentação intensa das crianças, mostrando em seguida que a punição não é de modo algum educativa. E mais do que isso: revela o fracasso da missão pedagógica.

O que seria um “bom recreio”? Rosely responde: “digo que se um velho ou um bebê for colocado no meio do espaço e sobreviver sem escoriações é porque as crianças fazem um bom intervalo”.  A autora observa que “a criança tem energia e precisa gastá-la”. Contudo, o senso comum diz que, para isso, elas precisam “correr, gritar, pular”.  Rosely mostra que não é bem assim, pois a criança acaba por ficar mais agitada. Haveria outros modos de liberar essa energia, mas “perdemos a mão na hora de ensinar”. Não seria pela proibição, ou pela mera verbalização que se conseguiria educar o movimento da criança. Para a ensaísta, deveríamos ser mais precisos. E que deveríamos ter, na hora do recreio, “mais educadores por perto, não apenas inspetores”. E conclui dizendo que “as escolas precisam reconhecer que a hora do recreio é uma excelente oportunidade educativa e, como tal, exige planejamento, objetivos, estratégias e um ambiente organizado e minuciosamente preparado para o que pode acontecer”. 

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O bullying professor-aluno e a transferência de autoridade

Crise na transferência de autoridade?

Ouço educadores reclamarem da ausência de autoridade na educação. Há uma percepção reinante de que podem ser processados juridicamente por qualquer coisa, sem falar nas agressões praticadas por alunos. Volta e meia recebo mensagens eletrônicas com prognósticos sombrios sobre a situação atual. E o que me preocupa é que muitas dessas análises têm se mostrado extremamente conservadoras: ausência de valores, inversão das relações de poder etc. Os pais são caracterizados como incapazes de realizarem a transferência de autoridade para a instituição escolar. Noutra hipótese, talvez não sejam eles mesmos exemplos de autoridade. Vivemos, segundo essa opinião,  numa época de total anomia.

O raciocínio me parece devedor de uma polaridade: do poder do professor ao poder do aluno. Algo foi retirado do primeiro e repassado ao segundo, daí os males de nossa época. O que me parece uma grande simplificação. Pois, como é entendido que a polarização tende para este último, tudo o mais se perderia: o rigor do conhecimento, as normas e tradições, o respeito, a consideração pelos superiores etc.

Por essas vias, acabamos por ignorar os agenciamentos de poder, da qual não podem ser separadas nossas práticas existenciais e pedagógicas. E de sobra, passa-se por cima das mudanças  sociais que lhe são correspondentes. Além disso, camufla-se o bullying professor-aluno, assim como o que ocorre na relação instituição-aluno, que não podem ser ignorados, mesmo quando não se mostram por meio de agressões físicas e morais.