Estou às voltas mais uma vez com a questão: como se dão as passagens entre um plano de sensibilidade, próprio da cultura lúdica da infância, e o plano de arte?
Esses três planos não existem em relação de continuidade e nem se apresentam como coisas idênticas. Porém, todo um movimento da arte contemporânea tem nos levado a repensar as relações entre a arte e a vida. A separação entre arte e vida foi, durante muito tempo, algo dado. Do lado da vida a instabilidade, o efêmero, o que se desgasta e se perde. Do lado da arte, o que se conserva (pelo menos no espírito), o que transcende nossa existência precária. São essas fronteiras que passam a ser questionadas, tornando-se menos rígidas.
No livro Ideograma: lógica, poesia e linguagem, Haroldo de Campos (organizador e um dos autores) aborda entre outras questões, o pensamento e a trajetórica intelectual de Ernest Fenollosa, traçando, inclusive, uma breve abordagem dos elementos que ele apresentou como educação para arte. Fenollosa foi um pesquisador voltado para a poesia (Pound), os ideogramas e arte oriental.
Sublinho as duas linhas principais dessa visada: a ênfase na atividade criadora e não-imitativa e no estudo da composição. Tudo guiado por uma perspectiva relacional. Fenollosa foi inovador para sua época, quando desmontou preconceitos contra a compreensão das artes e do pensamento chinês e japonês. Alguns o consideram precursor da moderna antropologia.
Volta e meia deparamo-nos com o tema da violência e da agressão nos jogos corporais e simbólicos das crianças. Nesta hora perguntamo-nos sobre os limites entre realidade e ficção. E mais: em que medida tais ficções, supondo que estejamos nesse campo, acabam por influenciar o comportamento real? Questões que se fazem recorrentes, principalmente nas práticas do Teatro-Educação, quando o real e o imaginário parecem se misturar. Ocorre de encontrarmos esses temas violentos e agressivos nos desenhos das crianças. Veja, por exemplo, as imagens em tela desenhadas por uma criança de 07 anos de idade: armas, ataques e batalhas, sangue escorrendo, terror… No teatro isso é mais “dramático”, justamente porque os corpos estão ali, em interação. A partir de Peter Slade (do seu já clássico O jogo dramático infantil), podemos entender que, no primeiro caso, o jogo é projetado (no papel, quando se trata de desenho, ou com objetos e bonecos). E nos jogos simbólicos e corporais, o jogo é pessoal. Nestes últimos, estamos envolvidos de corpo e alma. E então, nos perguntamos mais uma vez: qual a natureza desses jogos corporais e simbólicos, quase sempre carregados de tais cenas agressivas e violentas?
Outro dia pude vivenciar uma experiência de teatro performativo com crianças. O que vem a ser este tipo de criação cênica e corporal? Antes de tudo, trata-se de um plano contaminado pela Arte da Performance. E neste caso deparamo-nos, ainda, com as inúmeras tentativas de classificação. Porém, mais intenso e expressivo é pensar por devir, limiares e transformações… Isso não nos impede, evidentemente, de buscar definições. Não por contornos num sistema de encaixe, mas por vizinhanças e variações contínuas. Ou seja, fazendo-se em movimento.
Num outro texto abordei a Função do brincar na educação infantil. Volto às lembranças do recreacionista que fui. Desta vez, no entanto, quero cuidar de outra questão: a diretividade ou não-diretividade da ação. Como se colocar diante do universo lúdico da criança? Isso depende, naturalmente, do contexto. No caso, estamos abordando a função do educador no recreio escolar.
Como recreacionista, vivi experiências que me trazem, ainda hoje, insightsmuito interessantes. Antes de tudo, é preciso voltar ao lugar das lembranças. Como dizia no outro texto, tudo começou mesmo na Escola Balão Vermelho. Estávamos no início da década de 1970, colhendo os efeitos do recrudescimento da ditadura militar, das perseguições políticas, num clima de medo. E no meio disso tudo, três educadoras, Bete Lobato, Ieda Brito e Maria Helena Latalisa, resolveram abrir um espaço para o porvir: uma escola para a educação da sensibilidade, para a busca livre do conhecimento e do estabelecimento de novas relações entre as pessoas. E como disse antes, começavam por mudar o conceito de recreio: não mais o oposto ao trabalho, mas o que lhe é complementar e o resignifica em última instância – o brincar como o trabalho da criança, exploratório e sensível, rizomático e aberto.
Nos primeiros momentos, eu adentrava naquele mundo das brincadeiras infantis. As crianças tinham um quintal, com areia, terra, árvores etc. Não havia o medo de se sujar, como observo em algumas escolas hoje. Aliás, outro dia vi um tanquinho de areia numa escola que ficava a altura das mãos das crianças, para que elas não precisassem entrar nele – e nem podiam, pois era apenas uma espécie de canteiro. Ou seja, envolver-se com o mundo sim, mas apenas com a ponta dos dedos…
Era uma agitação molecular. Quando digo isso, quero dizer com base em Gilles Deleuze que as crianças vivenciam encontros não previsíveis nos espaços do recreio. Acho que na maioria das escolas, hoje, os espaços são excessivamente delimitados – isto é, delimitadores. Molares, para pensar de novo com Deleuze. As crianças já encontram brinquedos e formas de brincar moldadas, formatadas: um tanque de areia, brinquedos etc. Não que eles não possam existir, mas não precisam dominar a paisagem. No caso do Balão Vermelho, nós tínhamos à nossa disposição um quintal: aquilo que o nosso blog amigo, o Quintarola, tanto valoriza.
Qual a função do recreio na educação infantil? Naquela demanda do Balão Vermelho nos idos 70 estava uma ideia muito importante: espaço potencial de educação, de atividades de conhecimento, porém num modo não diretivo. Mais do que isso: com os materiais que a criança encontra a mão para manipular e se envolver de modo não programado. Misto de meio natural (terra, árvore, areia, espaços, pedrinhas, folhas, gravetos…) e produzido (espaços, brinquedos de arquitetura etc.). E então entramos na questão: eu começava entrando num campo de agitação molecular, onde as coisas todas (toda sorte de brincadeiras e de encontros não planejados) já estavam acontecendo.
Que não se entenda a não-diretividade como espontaneísmo etc. E aqui reside a maior causa dos enganos pedagógicos: deixar como estar para ver como é que fica. Os educadores, nessa hora, estão tomando café, conversando, distraindo-se etc. Nós, recreacionistas, sabemos que essa é a hora.
Difícil ver e entender o que acontece nesse campo de agitação molecular. No outro texto chamo a atenção para os processos metaestáveis, sistemas auto-organizados, emergentes etc. Os educadores deveriam ser educados a aprenderem a ler o ambiente flutuante e móvel do brincar não dirigido. E descobrir ali, também, suas repetições, suas linhas molares, segmentadas, pois que elas existem ali.
Mas eu não tive a oportunidade de olhar de fora o brincar das crianças. Fui logo caindo naquele mundo. Caíram meus modelos, minhas máscaras, minhas defesas. E entrei em contato com a vida pulsante do brincar nos quintais.
O que eu fazia? Eu me envolvia diretamente com as atividades das crianças. E eu me descobria brincando com elas. Não havia método, eu estava descobrindo as coisas… Maria Helena Latalisa, a Leninha, logo me deu um “presente” que me acompanharia por toda a vida em todas as minhas outras atividades: um diário de campo.
Aqui, também, o primeiro passo para adentrar num processo não diretivo e que evita, contudo, de cair no buraco do espontaneísmo. O registro das atividades, das perguntas, das questões… No emaranhado das experiências você puxa uma linha, acompanha seu desenvolvimento, sua direção… E então pode voltar, no dia seguinte, com outro modo de entrar naquele mundo.
Podemos perseguir, assim, outro modo de nos entendermos como recreacionistas: nem não diretivos e nem diretivos – em processo. Guardiões do processo, deveria ser o nome da profissão de quem trabalha com a recreação na educação infantil. Muito diferente do recreacionista que tem por função apenas oferecer objetos (bolas, cordas para pular, jogos etc.) para as crianças. Ou que vive somente de “controlar” o momento do brincar.
O momento em que as crianças estão livres de atividades dirigidas, voltadas para o brincar somente, é uma cartografia de espaços e tempos. Uma configuração experimental, como aborda Gerda Verden-Zöller.
Voltando às anotações, através delas você descobre um meio de realizar uma intervenção não intervencionista, se me explico bem. Quero dizer que você toma posse de uma imanência e, a partir dela, interage com o meio, seus impulsos e o outro. Quanto aos cadernos, eles tornam-se uma criação sua, servindo a múltiplos fins. Os cadernos de campo foram meus grandes aliados. E continuam sendo. Em toda e qualquer aula ou oficina de teatro, ou mesmo ensaio, meus diários estão ali, rabiscando a pele das coisas, fazendo mapa.
Depois, passada a primeira fase – a do espanto na ação – comecei a trabalhar de modo cada vez mais diretivo. Passei do recreacionismo para a oficina de arte, no caso, de teatro. Mas, a cada vez que aprofundo mais nesse caminho diretivo, redescubro o primeiro dia, aquele em que cheguei num quintal e brinquei com crianças sem qualquer direção predeterminada. Apenas seguindo a intuição e as linhas de errância do brincar.
Uma volta mais diretiva exige, a toda hora, uma revolta menos dirigida.
Estive em Cuiabá no dia 06.10 para discutir a Produção Teatral para Crianças, na Mostra Internacional de Teatro Infantil.
A minha apresentação teve por base as relações entre a produção cultural e a cultura da criança. Entendo que a produção cultural não pode deixar de ser contextualizada: o significado da infância em nossa sociedade. Para tanto, tomei como linha mestra o que Clarice Cohn chama de “a criança como sujeito cultural ativo e produtor de sentido sobre o mundo” (Antropologia da Criança, ed. Jorge Zahar).
Contexto: a criança como produtora de cultura
Esta abordagem traz, assim, uma “novidade” que, entretanto, encontra barreiras: a) por parte de um sistema de ensino que não consegue aceitar a criança fabuladora, isto é, a criança como produtora de cultura; b) por parte da indústria cultural que somente trata a criança como mera consumidora (e muito da produção teatral destinada a esse público vai nessa direção); c) pelo sistema da reprodução social, que insiste em ver a criança como o ser que “ainda não é”, que deve ser objeto de investimentos para “ser” no futuro.
A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.
Imagem: Kandinsky
Por que o brincar?
O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.
A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.