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O outro incluso e a narrativa: crianças jogando bola na rua

Ao descer a rua, numa tardinha, passo por dois meninos jogando bola numa esquina. De cada lado da rua, as garagens, com os respectivos portões, serviam de gol.

Um dos meninos, por volta dos dez a doze anos de idade, liderava em habilidades técnicas com a bola. O outro, próximo também dessa idade, apresentava dificuldades. Ele não dominava a bola como o amigo, me parecendo algo como uma deficiência de articulação motora.

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Geral

Antes de Adão: Jack London

“Bem cedo em minha infância aprendi que as nozes vinham do mercado, os morangos do vendedor de frutas; mas, muito antes de saber disso, em meus sonhos, colhia nozes nas árvores ou as juntava e comia debaixo das árvores e, da mesma forma, comia morangos de trepadeiras e arbustos. E essas coisas não faziam parte de nenhuma de minhas experiências.”

Narrada na primeira pessoa, essa é a história de um menino que passa a ter sonhos que, depois de um tempo, descobre que eram vivências dele, na pele de um ancestral seu: um primata jovem.

Um livro que qualquer adulto amante das boas histórias gostaria de ler para si e, igualmente, para uma criança – ou um grupo de crianças. Jack London é um mestre de aventuras sem fim, com adaptações para o cinema, como Caninos Brancos. Em Antes de Adão vamos seguindo as lembranças desse tempo em que o menino foi um primata, seus embates com a família, quando começam a perceber nele comportamentos estranhos, quando situações cotidianas remetem a essas memórias ancestrais.

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A menina que veio com sua boneca para a aula de teatro

Aguardava na entrada da sala de práticas de teatro uma turma de crianças que tinham entre 9 e 10 anos de idade. Meados dos anos de 1980, em uma escola formal de ensino médio. Noto que uma menina chega com uma boneca na mão. Aquilo se tornou emblemático para mim, para o resto de minha vida: essa criança não tem que se desfazer desse objeto que forma um mundo para ela. Cada momento em que me deparo, inclusive com atores e atrizes, é sempre isso: o que vem – o que emerge no momento – deve fazer, de algum modo, parte do processo criativo.

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Walter Benjamin: o brincar e o rosto do mundo

“As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Nelas estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.”

Walter Benjamin, in Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Duas Cidades/Editora, 2002

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Geral infância

o mundo de cultura da infância acabou?

Tarde fria do mês de julho, com um céu azul e sem nuvens. Vejo três crianças brancas, descendo a rua de um bairro zona sul, acompanhadas de uma senhora. As idades variam entre os 07 e os 10 anos mais ou menos. Estamos no período de recesso escolar – antigamente chamado de férias porque era o mês inteiro e não somente esses quinze dias encolhidos. O que eu constato? Muito provavelmente, esse grupo humano seguirá para algum algum shopping center. Ou, no melhor das hipóteses, para alguma pracinha cujos espaços voltados ao brincar já são tão delineados – pouca margem para a indeterminação. Talvez uma casa onde tenha quintal? Difícil isso acontecer hoje em dia.

Essas crianças não se deparam mais com o que chamamos de mundo de cultura da rua, que já foi o mundo de cultura da infância – que proliferava até final dos anos de 1960 e de modo mais rarefeito no início dos anos de 1970. Sim, um mundo das ruas, dos terrenos baldios, dos espaços ainda não totalmente determinados pelo uso planificado. Não existem mais terrenos baldios, e os que ainda resistem são cada vez mais raros e dispostos mais para as populações periféricas. Ali se instalavam os circos, surgiam os campos de futebol, se reuniam os meninos e as meninas para viver suas narrativas de corpo, ficção e jogos. Nas fases e faixas de transição, quando se instalavam as construções, os dutos e pavimentações, ainda assim esse era um mundo a ser habitado pelo brincar – até que logo se definia um uso que não cabia mais a infância e sua cultura lúdica.

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A criança e o movimento

Imagem: Traces – por Micagoto

Novamente pude observar crianças brincando sozinhas, isto é, sem direcionamentos por parte de adultos. Estava no Centro de Cultura do Banco do Brasil de Belo Horizonte, fazendo uma refeição leve no início da noite, sentado em um dos bancos dispostos no amplo pátio interno do prédio histórico. Nele, duas meninas por volta de quatro a cinco anos, brincavam. Provavelmente pai e/ou mãe estavam ali, numa das mesas externas do café.

O que essa breve observação me trouxe?  Ela me inseriu mais uma vez no motivo recorrente de minha caminhada nas artes da cena: a criança como inspiração – e não o contrário, querer ensinar teatro e/ou dança para crianças.  Não que uma prática pedagógica não possa ocorrer nesse sentido, é que ela teria outras bases. 

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O movimento e o caminhar como conhecimento

Na introdução de Ways of Walking: ethnography and practice on foot ( University of Aberdeen, UK ), os editores, Tim Ingold e Jo Lee Vergunst, contrastam os modos de aprendizagem das crianças ocidentais nas escolas e das crianças aborígenes. O livro se propõe a a uma abordagem antropológica transdicisplinar (entre disciplinas e temáticas) sobre os modos de caminhar, a percepção do ambiente, o pensamento, o corpo, a criatividade etc. Os autores nos convidam, por exemplo, a notar que um adulto sempre tem o olhar para longe do aqui-agora quando conduz uma criança pela mão, enquanto esta mantém o olhar mais baixo, mais flutuante, aberto às ocorrências do entorno.

Selecionei dois trechos da Introdução (numa tradução livre), quando os autores comparam práticas de condução das crianças por adultos, nas culturais ocidentais  e aborígenes. Eles citam um dos artigos presentes no livro, em que a autora, Elizabeth Curtis, discute uma prática escolar  em que as crianças vão, guiadas pelos educadores, estudar o patrimônio histórico da cidade.  O modus operandi, que conhecemos tão bem por ser tão usual, é o de uma separação entre o pensamento e o caminhar. O primeiro se faz sedentário e o segundo se vê controlado e, por isso, linear.

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O menino constrói e desconstrói

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Imagem: http://www.starwars.com/news

O menino, por volta de uns cinco anos, estava inquieto na sala de espera do consultório. A mãe demorava demais. Entabulei com ele uma conversa em torno da espada que  empunhava, meio desanimado.

Ele me disse que aquela era a espada do mal, do seriado Guerra nas Estrelas.

Entrei, então, nesse mundo. No poder que aquela espada poderia ter. O menino se entusiasmou e passou a falar do que a espada poderia fazer. Fazia gestos com a arma. Narrava a saga. Eu seguia alimentando esse jogo ficcional. Não havia mais tédio.

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Meu corpo de menino – por Kuniichi Uno

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Imagem: Steve – http://aqueous-sun-textures.deviantart.com/

 

“O mundo, o universo se lança em meu corpo de menino, e ele não tem nem histórias, nem personagens. A criança não faz nada além de descrever ou inscrever a velocidade e a flutuação de tudo que se passa em seu corpo sem forma. Os dramas, os acontecimentos e as sensações que perturbam os adultos não são mais, pra esta criança, do que o movimento perpétuo dos átomos constituindo a vida”.

Huniich Uno, in A gênese de um corpo desconhecido. Tradução de Christine Greiner, com a colaboração de Ernesto Filho e Fernanda Raquel. São Paulo: n-1 Edições, 2012.

 

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Na aula de jogos corporais, o menino que não podia andar

Imagem: Discovery Brasil: http://discoverybrasil.uol.com.br/
Imagem: Discovery Brasil: http://discoverybrasil.uol.com.br/

 

Na Escola Balão Vermelho, nos anos de 1980, iniciava uma nova turma com crianças entre 05 e 06 anos de idade. As aulas eram de jogos simbólicos e corporais. Foi então que surgiu, na porta do salão, um menino lindo e sorridente, com muletas e uma babá que o acompanhava na adaptação aos ambientes e atividades. E ela me contou que ele tinha paralisia em ambas as pernas. Enfim, ele não andava. Fiquei atônito: o que fazer?

Lá dentro da sala os outros meninos e meninas corriam, se jogavam uns nos outros, encontravam seus interesses, nessa busca de entrar contato com o espaço, de produzir espaço. E agora?

O menino tirou as muletas e sentou-se no chão. Pedi que todas as outras crianças se deitassem. Comecei a atividade assim, naquele plano baixo. E fomos brincando a aula toda. Transitava com eles do simbolismo aos jogos: éramos tubarões, isso e mais aquilo. Havia até jogo de pegar e de fugir: tudo ali, sem que ninguém levantasse e corresse. E o menino brincava à vontade.

Ninguém percebeu, ou pelo menos não comentou, que a aula foi feita para o menino que não podia andar. E quando terminamos ele me abraçou com força. Éramos cúmplices dali para a frente.

E foi um semestre inteirinho assim: brincando com todas as crianças no chão. Sem explicações, sem conversas outras. Ninguém se queixando. E as “aventuras perigosas”, como as crianças do Balão Vermelho chamavam minhas aulas, continuavam. Éramos tubarões e outros peixes. Todo dia o menino me abraçava no final de cada aula.

Foi assim.